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Olhado

publicado: 28/07/2023 12h23, última modificação: 28/07/2023 12h23

por Felipe Gesteira*

Dona Estefania nunca deixou de rezar pelo neto. Tinha seu nome anotado em um caderno de oração, assim como dos demais familiares. Todos aqueles que estivessem vivos estavam registrados lá. Ela fazia preces pedindo pela integridade física, saúde, sucesso na vida de modo geral, paz, amor, tranquilidade e prosperidade. Quando terminava de ler e pedir por cada um, só então ela começava a interceder por James. Era o chamego de vó aquele menino, desde muito novo. Os demais diziam que ela tinha neto preferido, o que a matriarca prontamente contestava e fazia de tudo para disfarçar. Mas na ora em que a conversa se restringia somente entre ela e Deus, ninguém teria como medir quanto tempo seria dedicado a cada qual.

O menino decidiu se tornar jogador de futebol, e desde as categorias de base a avó entrava em campo, a seu modo, de joelho no chão. Pedia para que Deus o ajudasse a ter oportunidades com a bola; para que pudesse desenvolver seu potencial; que nenhum alimento o fizesse mal, desse indisposição ou coisa parecida; que seus chutes de longa distância tivessem a bênção da sorte e, de acordo com o merecimento, sendo o bom menino que era, caíssem eventualmente para dentro do gol. Dona Estefania pedia que o neto fosse benquisto por todos os companheiros, xodó da torcida, e até proteção contra entradas mais duras dos defensores adversários a avó pedia. Certa vez, após levar um carrinho lateral que entortou seu tornozelo e o jovem jogador nada sofreu, a avó promoveu na igreja um culto em ação de graças pelo livramento concedido.

Quando se tornou profissional, muitos da família suspeitavam que havia influência da fé de Dona Estefania no sucesso do jovem James. Ela desconversava, dizia que era tudo mérito do esforço dele, e que Deus apenas ajuda um pouco a quem se esforça. Quando o recebia, agora sem caber mais em seu colo, pedia tão somente que o menino deixasse de lado esse sonho de jogar na Europa. James sorria, entendia que se tratava de uma saudade por antecipação, um excesso de zelo, mas nem considerava. Seu desejo de viver o futebol europeu estava acima de um conselho de vó.

O jovem brilhou no mundial e foi arrematado para a Europa como promessa. Viam nele um craque como fora Rivaldo ou Ronaldinho Gaúcho, desses que entram pra virar o jogo do avesso com assistências desconcertantes. Mas apesar de tamanha expectativa, não foi bem assim que se sucedeu.

Dona Estefania dizia que aquilo só podia ser olhado.

– Isso é gente que não aguenta ver um latino fazendo sucesso, brilhando na vida – dizia.

E da mesma forma se preocupava. Todos os dias pedia que alguém lhe desse notícias se ele estava dormindo bem, se alimentando, se estava feliz de modo geral com a nova vida.

– E se meu menino tiver uma febre, quem vai cuidar dele?

Os filhos tentavam tranquilizar, mas a matriarca não sossegava. Decidiu ter uma conversa a sério com Deus. Pediu que trouxesse seu neto de volta. E todos os dias rezava, cada vez com mais fervor, pois sabia que somente perto de sua terra ele poderia reencontrar seu bom futebol. 

– Não é bem assim que funciona – ela ouviu, no íntimo, como se fosse o divino em contato espiritual.

Depois, o canal se fechou, não soube de mais nada. Passou a rezar ainda mais, praticou jejum, e num lampejo de esperteza, propôs ao Pai celestial uma flexibilização. Se não fosse simples trazê-lo para casa, ao menos que viesse para a América do Sul, mais perto dos seus e longe do olho gordo lá de cima.

Dona Estefania abre os olhos, sorri, confiante de que sua prece será atendida, e levanta do chão para atender às batidas insistentes na porta da rua.

– Mãe, a senhora não vai acreditar. Nosso menino vai jogar no Brasil!

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 28 de julho de 2023.