O calango não tem um segundo de paz. Ele tenta repousar do almoço em um toco seco, mas precisa ficar escondido. À sua espreita, não um predador, mas seis crianças, entre meninos e meninas, ladeados, todos sob sol forte, apontando para a madeira ressecada. Eles esperam um mínimo vacilo do pequeno réptil. Basta apontar a cabecinha para fora do buraco que o protege e uma saravaida de pedras voa em sua direção. Armados com baladeiras, os infantes treinam para as Olimpíadas de Rua, competição que promete movimentar pés descalços do bairro inteiro em torno das medalhas de ouro, prata e bronze.
Os metais são de mentirinha, obviamente, mas a conquista de cada atleta será verdadeira. Muito mais vale a pabulagem chancelada pela medalha representativa ao ouro do que seu valor real. Definidas as competições, serão disputadas provas de tiro com baladeira, tiro com olho de pombo, corrida em cima de muro, rabiada de bicicleta e escalada em pé de goiaba.
Ansiosas para competir por algo que já praticam diariamente, as crianças se dividiam dentro de suas especialidades. Mas o pequeno Matheus, conhecido como o menino mais danado da Rua do Meio, queria o prêmio maior. Seu Tobias, servidor público aposentado que hoje atua no ramo do entretenimento infantil de forma gratuita, ‘pastoreando’ as crianças do bairro, como ele mesmo diz, propôs uma categoria acima de todas, baseado no pentatlo moderno, que reúne competidores em torno das modalidades hipismo, esgrima, natação, tiro esportivo e corrida. A ideia do aposentado foi justamente propor uma maior competitividade entre as crianças. Ele sabia que Matheusinho, por exemplo, se não vencesse todas as categorias, certamente estaria em todos os pódios. Pois foi assim, mexendo com os egos infantis que o organizador do evento conseguiu atrair os atletas mais ambiciosos. Mandou fazer um troféu para o que seria chamado de vencedor absoluto. Nas regras, aquele que competisse dentro do pentatlo não poderia disputar as demais categorias isoladamente.
Deu certo. Além de Matheusinho, Davi, Camila, Arthur e Ritinha estavam inscritos nesta categoria. O que mais chamava atenção dos pais, irmãos mais velhos, tios, avós e primos dos competidores era a determinação de quem abria mão de uma medalha quase certa em busca de um troféu em disputa sem segunda colocação. Só haveria um vencedor.
O treinamento era intenso, tanto que em determinado momento passaram a praticar isoladamente, para que os adversários não percebessem a tática que seria adotada nos dias de provas. O pequeno Matheus mudou até sua dieta para melhorar a adequação à competição. A papa de aveia que comia todos os dias como primeira refeição foi reforçada por um ovo de codorna, o que, segundo sua avó, lhe daria mais energia e também astúcia.
A primeira prova era tiro de baladeira. Após muita divergência entre árbitros e organizadores, foi definido um alvo pintado, pois chegaram à conclusão que atirar contra o calango se tratava de uma maldade desnecessária. Arthur, que havia se negado a competir nesta etapa se fosse com um alvo vivo, mesmo sabendo da perda de pontos, foi beneficiado, mas ainda assim não venceu. Na prova seguinte, tirou a diferença. De tanto treinar o tiro com olho de pombo, seus dedos médios já estavam calejados. Na média das provas de tiros estavam todos praticamente empatados, com pequena vantagem para Matheusinho.
Na corrida em cima do muro, Camila e Ritinha assumiram a ponta e colocaram boa vantagem sobre os meninos. Ficou evidente que Arthur e Davi tinham medo de altura, e na velocidade, parecia que as meninas corriam em terra firme. Matheus chegou em terceiro, porém bem atrás delas.
Os meninos conseguiram recuperar os pontos perdidos na prova das rabiadas de bicicleta. Nenhuma criança havia alcançado vantagem larga o suficiente para comemorar vitória antes do tempo. A última prova seria um tudo ou nada.
A organização do evento vistoriou antes o pé de goiaba e retirou todas as frutas, deixando apenas uma, marcada com caneta. O vencedor será aquele que trouxer a goiaba para os jurados.
Como visto na prova do muro, Arthur e Davi ficaram para trás. Havia expectativa de que as meninas dominassem sozinhas, mas Matheusinho subia firme. Ritinha ficou para trás, e logo a disputa se resumiu a Matheus e Camila. No último palmo, o menino conseguiu encaixar o pé no galho certo e alcançou a fruta, mas foi acometido por uma fome tão avassaladora que se sentiu impelido a morder a goiaba. Foi mais forte que ele. Chegando lá embaixo, em vez da marca de caneta só existia uma mordida. – Mundiça – disse Camila, que herdou o título.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 25 de agosto de 2023.