por Felipe Gesteira*
Estava marcada para o dia 4 de novembro a última etapa da peneira do Auto Esporte, processo seletivo de jovens atletas que eventualmente teriam uma valiosa oportunidade no time profissional que viria a disputar a elite do Campeonato Paraibano de Futebol. Como a equipe não era das maiores da competição, os atletas da base costumam ser aproveitados no elenco principal, o que apesar de expor os jovens a desafios para além de suas capacidades pela pouca maturidade em campo, servia como uma grande vitrine, podendo garantir o contrato em um clube maior na sequência da temporada.
Amigos de infância não é o termo mais adequado para a relação entre Getúlio e Ronaldo. Eles cresceram jogando bola na mesma rua, quase sempre em times opostos nas disputas de travinha realizadas no bairro de Mangabeira. Agora, no funil da seleção do Auto Esporte, enfrentando garotos de todos os bairros da cidade, um inesperado sentimento de amizade surge no lugar da consolidada rivalidade.
No fim de semana que antecede a última peneira, Getúlio aparece na casa do até então rival e agora quase amigo. Ronaldo estava eufórico, pálido, suando frio e com uma tremedeira incontrolável. Ao perguntar o motivo de tamanho nervosismo, ele responde que talvez tivesse encontrado a solução que garantiria a classificação de ambos no tão concorrido processo seletivo.
— Rapaz, para com isso. Deixa de invenção, é mostrar o nosso futebol e pronto, não tem mistério! — diz Getúlio, tentando tranquilizar o amigo que tira do bolso uma folha de papel velho, amassado e amarelado, provavelmente arrancado de algum livro, e lê em voz alta.
“Aquele que portar embaixo da língua um osso médio de galinha matriz, na noite do Dia de Finados, no centro do cemitério, se tornará, por uma semana, invencível”, dizia o texto no papel arrancado.
— Isso é pacto com o demônio! — disse Getúlio, assustado, porém interessado.
— Onde tem falando de demônio aqui? — justificou Ronaldo, tentando convencer o amigo a fazer parte de sua trama.
— Eu só vou se você garantir que também vai.
— Eu só não vou se o próprio demônio me impedir.
Se ainda não havia pacto algum entre eles e qualquer entidade sobrenatural, os dois selaram entre si o acordo de que apostariam na busca por poderes sobrenaturais que garantissem melhor performance na seletiva.
Na noite do Dia de Finados, conforme orientava o texto, Getúlio estava lá, a postos com seu osso de galinha. Uma hora de espera, duas, três, nada do amigo aparecer. Uma chuva torrencial caiu e ele achou que se tratava da resposta do oculto. Colocou o osso na boca e esperou. Molhado e cansado, Getúlio foi para casa ao amanhecer. Em vez de poder sobrenatural, acordou com um resfriado nunca antes enfrentado. Mas acreditava que ainda encontraria sua invencibilidade. Passou o dia de cama para tentar chegar inteiro na peneira. No dia seguinte, ainda doente, encontra Ronaldo inteiro. Os dois enfrentam o último teste, mas só o ‘amigo’ consegue se classificar.
Em casa, Getúlio queria morrer de tanta vergonha. Chorou por duas semanas, mais por ter sido feito de bobo do que pela derrota.
— É isso que dá fazer acordo com demônio — disse sua avó, que em vez de acalanto, costumava tratar quem na família sofresse promovendo ainda mais sofrimento.
— Demônio não existe, vó! Esse “demônio” aí são as pessoas. As pessoas!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 4 de novembro de 2022.