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Pão com goiabada

publicado: 21/01/2022 09h45, última modificação: 21/01/2022 09h45

por Felipe Gesteira*

Por mais que praticasse todos os dias, faltava algo que pudesse alavancar a performance do pequeno Thiago nas partidas de travinha que aconteciam no poeirão em frente à sua casa, todas as tardes, religiosamente naquele horário após o almoço, logo que a comida ‘senta’ no bucho, ainda sob sol quente. 

Foram muitas as tardes em que ele esperou até que todas as partidas acabassem para ter alguma chance e, ainda assim, por vezes, terminou o dia sem jogar uma única vez. Ocasionalmente as partidas demoravam a começar porque era preciso esperar que alguém chegasse com uma bola, e o dono da bola nem sempre vinha das ruas mais próximas. Thiago teve a brilhante ideia de comprar uma bola, pois, morando de frente para o campo, todo dia ele garantia ao menos a primeira partida. 

Por um ano inteiro Thiago jogou bola, quase sempre somente uma partida por dia, mas com a constância da prática diária e ininterrupta. Um ano de treino e quase nada de evolução. Para ele não se tratava de pouco talento, pouco esforço. O jovem iludido não se enxergava como um perna de pau, acreditava faltar algo, algum segredo que os melhores jogadores deviam ter e guardavam a sete chaves. 

Num dia ordinário da escola, fim da aula de ciências da sexta série do Ensino Fundamental, o professor se despede dos alunos avisando que no próximo encontro traria um segredo que ajudaria e muito a quem gostasse de jogar bola.

A mensagem chegou para Thiago como se um anjo descesse do céu para trazer-lhe um recado do próprio Cristo. Dali em diante ele não dormiu mais. Por sorte, só dois dias separavam aquela aula da próxima. Ele sentou na primeira fileira, ouviu atentamente tudo sobre os intestinos grosso e delgado, tentou relacionar qualquer coisa com a melhora no desempenho para o futebol, mas nada fazia sentido, até que no final decidiu perguntar. 

— Professor, e o segredo para quem joga bola? 

— Ah, eu tinha esquecido! — disse o professor, sorrindo, e emendou a dica — É energia! Vocês precisam de energia para jogar melhor. Antes de jogar bola, comam um pouco de pão com um pedaço de doce e perceberão a diferença. Mas é só um pouco, viu?! — advertiu o professor olhando bem para Thiago, seu aluno mais gordinho da turma, fazendo aquele meio sorriso em tom de chacota com que os maldosos costumam adotar sempre que relacionam comida a alguém que está acima do peso. 

No mesmo dia, logo após o almoço, o menino não contou conversa. Pegou um pão francês do dia anterior, abriu no meio, recheou generosamente com fatias de goiabada até preencher todo o pão, fechou como sanduíche e botou para dentro, lambendo os beiços. Depois, refastelou-se à sombra do muro, de frente para o campo, com a bola debaixo do braço, até dar a hora do início da pelada. 

Em campo, nada mudou. Jogou como nunca, perdeu como sempre, mas sentindo-se muito melhor. Vibrante, capaz, feliz, cheio de doce e de si. Ali, imbuído da energia do açúcar, Thiago percebeu a importância do sentir. A partir de então, todos os dias eram ansiosamente aguardados pela felicidade que se avizinhava já na hora do almoço, pois pelada era sinônimo de pão com goiabada. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 21 de janeiro de 2022.