Foi na Copa do Mundo de 2002 que Deoclécio tomou a maior cachaça da sua vida. O modo de falar “cachaça”na verdade é jargão utilizado para descrever toda e qualquer farra regada a álcool, daquelas que só terminam no dia seguinte e, na maioria das vezes, os doentes e ressacados depois de se esbaldarem em bebidas diversas, frituras, enlatados e pão de alho com bastante maionese, atribuem a culpa à pobre da azeitona. Se o cardápio é exatamente o mesmo até para o mais ordinário jogo de futebol, na disputa de um mundial entre seleções o reforço é certo, com acompanhamento daqueles tubinhos de remédio para o fígado que supostamente servem para proteger a saúde dos torcedores. Mas naquela Copa de 2002, havia o agravante do horário dos jogos, de madrugada, ou de manhãzinha muito cedo. Assim, para não quebrar o clima, a turma começava os trabalhos logo depois do jantar, entravam em campo com o time Canarinho devidamente aquecidos, e sustentavam a festa até o dia seguinte.
Arlete acompanhava o marido em tudo, desde o preparo dos aperitivos, até a bebedeira. Quem cozinhava era ele: tripa frita, picado de bode, bisteca, torresmo; tudo enquanto ela cuidava de colocar a cerveja para gelar, organizar os pratos, copos, receber as visitas. Ninguém no prédio reclamava, pois se tratando de Copa do Mundo, o Brasil inteiro – ou quase – estava acordado. Mas o cheiro da cozinha deles era inigualável, percorria todos os corredores e subia escadarias e elevador. Vez por outra descia alguém com um engradado de geladas, para não chegar de mãos vazias, dizendo que a palha de aço presa na antena da TV havia voado pela janela e por isso estava sem sinal, já adentrando em meio às explicações e entregando a cerveja à dona da casa.
Foi lembrando disso tudo que Arlete e Deoclécio vivenciaram uma volta ao passado logo que souberam quais seriam os horários das partidas da Copa do Mundo de Futebol Feminino, a se realizar na Austrália, lá do outro lado do planeta. Se tratava da última participação da Rainha Marta em mundiais, não é pouca coisa, não! A maior de todos os tempos. Merecia um retorno aos banquetes de outrora, mas a saúde de hoje não é a mesma de 21 anos atrás. Seria preciso adaptar.
Já aposentados, não precisam se preocupar se haverá ponto facultativo em dias de jogos da Seleção. Obviamente deve ter, pois teve nas partidas do time masculino, então equidade é o mínimo a se exigir. Para os dois, importa muito, mas pouco muda na rotina. Deoclécio acorda de madrugada para fazer o café da manhã. Põe a água para ferver enquanto esquenta a frigideira. Começa pelo bacon, para liberar a gordura que será usada na fritura dos ovos, mexidos, porém um pouco moles, do jeito que Arlete prefere. “Cremosos”, ela diz. Em seguida ele assa fatias de queijo coalho, e ainda algumas de queijo de manteiga, seu preferido, até formar uma casquinha que só larga da panela com a ajuda de uma espátula de madeira. Ao final de tudo, os pães na chapa, com manteiga, sim, e também um pouco de tudo que por lá passou antes que eles tocassem a superfície quente do metal. Deoclécio argumenta que é esse “gosto de tudo misturado” que dá o sabor de pão assado em chapa de padaria, porém feito em casa.
É dia de final. Não a final do mundial, pois a Seleção Brasileira ainda não chegou lá. O caso é que o tropeço no segundo jogo, diante da França, deu ao último a importância de uma final. Era tudo ou nada contra a Jamaica, e o Brasil precisaria vencer. De tão nervosos, foram duas garrafas de café, tendo uma sido consumida pelo casal logo na primeira etapa da partida. Eles bebericavam do café como quem toma cerveja assistindo a um jogo de futebol, e o pão na chapa era tira-gosto, com as mais diversas combinações possíveis contendo bacon, ovo, queijo, ou mesmo o pãozinho puro, apenas assado na manteiga.
– Pia a merda!
– O que é isso, menino. Respeita a treinadora!
– Tou falando a merda que vai dar esse jogo sem jeito. O Brasil precisa fazer um gol!
– É!
– Mas já que você falou nela, essa Pia é uma piada mesmo.
– Tá falando mal porque é futebol feminino.
– Pelo contrário, quem mais fala dos homens sou eu. Num jogo desse, nem Tite esperava tanto pra mexer.
– Deu ruim.
– Pois é. Não sei o que é pior, se a treinadora gringa que botou nosso time a perder ou o comentarista desqualificado que chama a Marta de “Pelé do futebol feminino”. Ela é a Marta, seu cagão. A Rainha Marta! Respeite!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 4 de agosto de 2023.