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Pelada dos sonhos

publicado: 01/10/2021 10h30, última modificação: 01/10/2021 10h30

por Felipe Gesteira


O jogo da tarde deste domingo pode ser um divisor de águas na carreira de Alcimar. A vitória sobre o Miramar de Cabedelo pelo quadrangular final da Segunda Divisão do Campeonato Paraibano garante o retorno do Nacional de Patos à elite do futebol estadual. O jovem carrega o peso da cobrança de ser filho de ídolo, o centroavante Radamés, um matador corpulento, alto, forte e habilidoso, implacável na pequena área.

Alcimar, por outro lado, é franzino. Apesar de rápido, o jogador de 19 anos nunca quis seguir os caminhos do pai e atuar na pequena área. Optou por ser meia, desses que constroem as jogadas e fazem com que a bola chegue redonda lá na frente. Seria o camisa 10 ideal não fosse o treinador, que só acredita em elenco repleto de volantes brucutus. Assim, o galego bom de bola se manteve no time somente pela relação do pai com a diretoria do clube, mas até então, no campeonato inteiro, não entrou um minuto sequer. Para a partida decisiva havia grande expectativa, pois Jael, o titular da vaga, estava com o joelho inchado, mas só ficaria de fora se não conseguisse tocar o pé no chão. Alcimar mal conseguiria dormir naquela noite de sábado, véspera do jogo.

Mal pregou os olhos. Ao acordar, o sertanejo de origem pobre e herança genética com influência europeia — comum no Sertão da Paraíba — sabe-se lá de quando e onde, percebe que não está na concentração para o jogo da Segundona, pelo Naça, mas em um vestiário. Outro vestiário! As cores, o emblema, ele reconhece de ter visto pela TV, nas transmissões dos jogos e na tela do videogame. Fica paralisado por um tempo, até que um colega o empurra para sua camisa, a de número 10. 

— Bora, Modric. O time já subiu, só falta você — avisa Casemiro, um brasileiro que também atua pelo meio, porém um pouco mais atrás.

Com a bola rolando, Alcimar se dá conta que se aquilo for mesmo um sonho, é no mínimo surreal. As entradas, as faltas, doem de verdade. O meia para de pensar a respeito e começa a fazer o que mais sabe: mágica com a bola nos pés. O Real Madrid enfrenta uma má fase, mas jogando em casa, no Santiago Bernabéu, o time impõe respeito. E o croata Luka Modric destrói no jogo de ida pela semifinal da Liga dos Campeões da Europa contra a poderosa equipe do Paris Saint-Germain. Ainda haverá o confronto em Paris, mas a vitória, com um gol e duas assistências do meia, está bem encaminhada. 

Novamente, Alcimar acorda assustado. Parecia que o treinador iria arrombar a porta do quarto tamanha era a força empregada nas batidas. O joelho de Jael amanhecera muito pior e o jeito seria contar com o galego para o jogo que valia vaga na Primeira Divisão. O filho do craque Radamés estava cansado como se tivesse acabado de disputar 90 minutos em campo como titular. Mesmo assim, não titubeou. Entrou em campo e foi determinante para a conquista do acesso. Marcou seu primeiro gol na carreira e deixou os atacantes cara a cara com o goleiro adversário por duas vezes, mas ninguém marcou além dele. Como o time só precisava de ‘meio’ a zero, o gol de Alcimar foi mais do que suficiente para levar a torcida à loucura.

Durante a semana inteira, o meia reserva do Nacional não pensava em outra coisa senão naquele sonho estranho. Ele assistia aos lances do jogo entre Real e PSG e era como se visse algo que fora vivido. De volta à realidade, o acesso já não mais bastava. O Canário do Sertão tinha chances reais de título e estava comprometido em levantar a taça de campeão. 

Em Madrid, Modric é pura concentração. Horas antes da partida final em jogo único contra o Bayern de Munique, o craque tenta relaxar um pouco. Começa a pensar em tudo o que já conquistou: Liga dos Campeões, título de melhor jogador do mundo, tudo num universo de milhões de dólares, mas com a devida distância de seu público. Falta ao croata a torcida na beira do campo, o delírio, o êxtase diante do impossível. Os gritos pelo seu nome. Ele cochila e, de repente, acorda assustado como se não tivesse dormido nem dois minutos. Está no banco de reservas, um banco de madeira improvisado à beira de um campo onde há tantos buracos quanto tufos de grama. Em sua direção caminha um homenzarrão, mancando, com a mão sobre o joelho esquerdo. O grito do técnico dói em seu ouvido: — Acorda, Alcimar! É a final, porra! Entra pra virar esse jogo!

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 01 de outubro de 2021.