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Quando o amor esfria

publicado: 22/03/2024 09h20, última modificação: 22/03/2024 09h20

por Felipe Gesteira*

Um café na mesa, bem servido, porém esquecido, esfria. Basta uma distração para ele ser deixado de lado. E aí, depois, já frio, perde o sentido. Se olhar para trás a fim de entender o que tirou o foco da bebida talvez não encontre o motivo. Por mais que busquemos culpados e justificativas, ele simplesmente esfriou. Da mesma forma é o amor.

No início do século passado, algo muito comum nas famílias brasileiras era o casamento arranjado. Esse costume não surgiu nessa época, é muito mais antigo, tampouco foi inventado por aqui. Desde que o mundo é mundo e existe intenção de perpetuação de poder se arranja casamentos entre desconhecidos. E dali eles têm a opção de viverem juntos, porém como estranhos, ou ‘fazer’ o amor acontecer. Na vã tentativa de consolar as noivas desesperadas diante do infortúnio, se dizia que o amor chegaria com o tempo. Tudo mentira. Amor de verdade numa situação dessas só num golpe de sorte, raríssimas eram as exceções.

Quando ouço o técnico Dorival Jr. pedindo que a população brasileira vista a camisa amarela nos dias de jogos da Seleção percebo a forçação de barra para que o amor aconteça assim, na marra. Vejo também muita gente culpar unicamente o movimento político que fez uso nos últimos anos da camisa amarelinha como signo identitário. É fato que a associação de um símbolo a uma tendência política pode distanciar as pessoas que não se identificam com aquele segmento. Por outro lado, não deixa de ser uma peça de roupa. Como experiência pessoal, digo que não me identifico com o campo que usou a camisa da Seleção Brasileira em manifestações e dias de votação, mas nem por isso deixei de usar a minha. Paguei por ela e uso sim.

Reduzir o desinteresse do público pela Seleção ao uso do símbolo por um grupo político é no mínimo procurar um culpado para se isentar da responsabilidade da Confederação Brasileira de Futebol, que pouco tem feito ao longo de muitos anos para fortalecer o esporte que é paixão nacional.

O amor pela Seleção esfriou e não é de hoje. Não foi o bolsonarismo, não foi o 7 a 1 em 2014. Esfriou quando as escalações começaram a ser definidas com atletas que sequer atuaram no Brasil. A cada convocação, uma nova surpresa para mobilizar a imprensa especializada. Lá iam os jornalistas buscar quem era aquele menino vendido ainda na base, revelado no futebol ucraniano, com passagem pela Russia, Grécia, ou qualquer liga menor, depois atuando em uma liga grande.

Para os clubes é mais vantagem vender cedo enquanto são promessas e apostar nas participações com vendas posteriores. Pois se não vendem na fase em que o jogador é promessa, talvez deixe de ser e se torne um atleta comum, mais do mesmo. É o ápice do futebol especulativo. Mas os clubes precisam sobreviver, também dependem de receita. A tabela não favorece, as ligas não favorecem. E a CBF poderia fazer mais.

Por que será que a Seleção de 1982 é tão amada até hoje? Não só pela qualidade, havia identificação. Até quando um craque vinha de fora, ele havia feito história por aqui antes de ser vendido. Nunca era um desconhecido. Torcer por quem não se conhece é quase como um amor às cegas. A estrutura do negócio precisa ser repensada. Também não vale de nada o discurso ufanista de que a Seleção deve ser montada só com atletas que atuam no Brasil. Essa tese está vencida. A Seleção deve ser composta pelos melhores, os clubes é que precisam ter mais condições para manter seus melhores no país.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 22 de março de 2024.