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Quebranto

publicado: 11/08/2023 11h15, última modificação: 11/08/2023 11h15

por Felipe Gesteira*

O menino não queria mais jogar futebol. Era grave, pois até se estivesse com o corpo pegando fogo, ele não podia ouvir falar em bola que já brotava lá no campinho, ardendo de febre e de vontade. Não tinha tempo ruim. Pulava a hora do lanche, matava aula se possível, mas uma pelada jamais era desperdiçada. Preocupado com tamanho desânimo, o pai comprou uma bola novinha, exatamente do modelo que ele havia pedido quando foram pela última vez no centro da cidade. João Neto levantou, fez três embaixadinhas e colocou a pelota lá no canto do quarto.

Os dias passavam e a mãe era só angústia diante de tanto desengano. O menino até comia bem, mas era uma sonolência de dar dó. Passava o dia bocejando, se espreguiçando, até que o pai desconfiou que o problema poderia ser de ordem religiosa. Mandou o filho se confessar e obrigou que o acompanhasse todo domingo à missa. Na segunda semana de tentativa a mãe tomou as rédeas, confirmando a desconfiança no oculto, porém desacreditando no padre da paróquia, pois, segundo seu instinto materno, o líder recém-chegado era jovem demais para entender mistérios dessa categoria.

Assim decidiram ir todos juntos, pai, mãe e filho, até a casa de Dona Zezé, a rezadeira mais antiga de toda a região. Católica fervorosa, apontada por muitos como a beata mais próxima de Jesus que já passou pela cidade, ela tinha fama de balançar um galhinho de arruda e desfazer qualquer nó. Foram anunciados na porta, eram conhecidos, pois haviam passado por lá para pedir uma bênção quando o casamento estava em crise, e logo em seguida veio o pequeno João Neto, que tanta alegria trouxe à família.

Ela se aproximou dos pais do menino com o mesmo carinho com que recebia qualquer pessoa. A visão cansada não lhe ajudava mais a ver ninguém, mas logo que a mãe contou a história, ela os reconheceu pela voz e deu um longo abraço. Beijo a testa de cada um dos três, passou a mão no rosto do menino e sentenciou: – Isso é quebranto! – Em seguida entrou apressada, pegou arruda macho e arruda fêmea, rezou para diversos santos, passou as ervas por todo o corpo da criança e depois fez desaparecer os poucos galhos que restavam em suas mãos. A família foi para casa confiante de que o problema estava resolvido.

Obrigado a rezar, João Neto não via sentido naquilo. Dois dias depois o quadro sequer melhorava. Ele dizia que só não estava com vontade de sair de casa, o que fazia sua mãe se aperrear ainda mais. Ouviu da vizinha que o pastor da igreja neopentecostal quebrava todo tipo de feitiçaria.

– Deixa de história, mulher, que filho meu num tem feitiço nem demônio coisa nenhuma! – retrucou a mãe, indignada com a insinuação.

Achou por bem levar o menino até a rezadeira do Sítio Pai João. Dona Josefa era mãe do caseiro, e desde que a cidade existe era conhecida por resolver de tudo, de problema de desamor até falta de prosperidade. Fazia exatamente o mesmo que Dona Zezé, com a diferença no destinatário do pedido. Em vez de interceder junto a Deus e os santos da Igreja Católica, pedia a índios, caboclos, exus, ciganos e outras entidades encantadas das matas. Também por isso sofria preconceito, porém os mais antigos da região diziam que seus poderes de cura e reza eram similares aos da outra beata.

Rezou, limpou, defumou, ordenou que todo mau olhado saísse dali e deu um chá para que os três bebessem. A mãe se arrepiou toda, o pai teve calafrios por dois dias, mais três de insônia, culpado por ter traído a fé católica. E o menino, nada. Continuava exatamente do mesmo jeito.

No primeiro fim de semana seguinte à última rezadeira, seus vizinhos da rua de trás receberam a visita de um sobrinho que acabara de se formar em medicina. Pelo sim, pelo não, pediram que o doutor olhasse João Neto, mas certos de que nada adiantaria, pois se nem as duas rezadeiras, muito menos o padre, deram jeito, como um jovem que mal engrossou o bigode daria? O médico examinou, fez uma série de perguntas, tirou da maleta um comprimido e entregou à mãe. – O que seu menino tem é só verme, dê isso daqui e semana que vem ele volta a jogar bola – disse, sorrindo.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 11 de agosto de 2023.