O corpo outrora forte já não responde mais como antes. O toque de bola, a explosão, a corrida em campo na disputa ombro a ombro contra o zagueiro adversário para estar sozinho diante do goleiro são cenas que agora permeiam apenas sua memória. Uma lembrança saudosa, sim, porém injusta para quem viveu tão intensamente o futebol e hoje não consegue sequer se sustentar sozinho à beira do gramado.
A doença degenerativa que tirou Givanildo da carreira de jogador profissional quando estava em seu melhor momento, aos 27 anos de idade, começou com dores fortes ainda dentro de campo, seguidas por lesões que o afastaram pela temporada inteira. Após uma série de exames, veio a constatação de que seus ossos estavam tão quebradiços que os médicos recomendaram o desligamento imediato de qualquer esporte de contato. Ele obedeceu e logo iniciou um tratamento experimental, já que para este mal até então não havia cura conhecida. O conforto com o fim das dores enquanto descansava o iludiu, pois bastou uma corrida de leve para que a maior parte dos pequenos ossos de seus pés se quebrasse, impondo-lhe um sofrimento partindo dos membros até o mais íntimo refúgio de sua mente, onde só o desengano consegue alcançar.
Ele dividia o quarto do hospital com Ana Júlia, que aos 15 anos teve seu sonho de se tornar jogadora de futebol destronado pela leucemia. A falta de um doador compatível mais o avanço da doença eram combustível para uma corrente de orações entre familiares, amigos, e milhares de desconhecidos que se uniam por meio da internet. A mãe sempre tentou impedir que a menina jogasse bola com os pés por injustificável preconceito, mas há pouco havia sido convencida pelos treinadores que Ana Júlia não era uma qualquer, tinha potencial para seguir carreira e até chegar à Seleção Brasileira. Hoje, diante da iminência de perder a filha, convive com o mais puro remorso.
Além do espaço físico e do amor pelo futebol, compartilhavam a impotência sobre aquilo que não está sob controle de força alguma imaginável. Lhes restava a fé, que as famílias de ambos diziam ter algum efeito sobre a cura, mas que eles faziam questão de desacreditar com fervor. No período em que estiveram no hospital, se tornaram amigos. Givanildo tinha Ana Júlia como a irmã mais nova a quem ele poderia dar conselhos e orientar na carreira; ela o via como exemplo a ser seguido. Riam, brincavam, choravam muito, e seguiram seus restos de vidas ao final dos tratamentos.
Meses depois, a TV de Givanildo estava ligada em um desses canais esportivos que passam o dia transmitindo debates e informações sobre futebol. A programação é interrompida pela notícia da morte de Pelé. Em choque, o ex-jogador não percebe, mas se levanta da sua cadeira de rodas. Ele leva mais tempo para digerir a perda do Rei do que para se dar conta de que de fato está em pé. Seus músculos tremem, é natural, pois há tempos estavam sem qualquer movimento. No segundo em que sente a firmeza das pernas e pés novamente em contato com o chão, é tomado pelo ímpeto de ligar para Ana Júlia. Ela atende a ligação com voz de choro, fala da sintonia de pensamentos, pois iria fazer a mesma coisa para contar do resultado do exame que acaba de receber: sua doença desapareceu.
— Foi naquele dia, Aninha! Foi ele sim!
Givanildo viaja no tempo junto com Ana Júlia para o dia em que uma pane no sistema do hospital atrapalhou os horários dos exames de todos os pacientes. Nos corredores onde não podia ter nenhum tipo de fila, houve encontros inesperados. A maca de Givanildo cruzou com a de um homem, eles se tocaram brevemente, e logo o maqueiro disse que ele era sortudo por ter cumprimentado o Rei Pelé. Longe da fé cristã e da crença em qualquer divindade tradicional, Givanildo, ali, caladinho, pediu sua cura ao maior de todos. Com tudo o que o craque já havia feito em campo, até transmutar o inacreditável em plenamente crível, por que não um milagre também fora das quatro linhas? Logo que chegou no quarto ele contou a Ana Júlia e ela abriu um sorrisão, pois neste mesmo dia de confusão, estivera com o Rei em uma sala de espera e ele, sereno, disse-lhe que ela voltaria a jogar.
No telefone, aos prantos, eles celebram as próprias vidas e festejam a memória do maior jogador de futebol de todos os tempos. Rei é pouco para aquele que foi incontestável. Pelé é eterno. Pelé é um santo!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 30 de dezembro de 2022.