por Felipe Gesteira*
A única coisa maior que o amor pelo Vasco da Gama na vida de Gervásio era seu cansaço para assistir pela TV às partidas do cruzmaltino. A lida de feirante o fazia acordar muito mais cedo que o sol para escolher as melhores hortaliças e encher sua barraca na Feira Central. Ao fim do dia, o máximo que ele conseguia era um dedo de prosa com os filhos, um cheiro no cangote da esposa, e o sono vinha forte antes mesmo do Jornal Nacional.
Em dia de jogo do Vasco a vida de Gervásio se transformava em um martírio. Quando a partida decisiva acontecia numa tarde de domingo, vá lá, ele até superava o cansaço acumulado da semana para acompanhar o time. Mas nas noites de quarta-feira, era impossível. Não tinha café certo que o fizesse permanecer acordado. Mal o árbitro apitava o início da partida e o pobre trabalhador já estava de olhos pesados, prontos para pescar.
Foi assim que ele perdeu muitas das grandes conquistas do time ao longo das décadas de 80 e 90. Farto de só ficar sabendo o que acontecera pela boca dos outros, no dia seguinte, e ainda fingir que acompanhou, com sorriso amarelo, só para não aparentar ser um torcedor visto como fraco, Gervásio resolveu buscar ajuda médica. Foi ao psiquiatra pedir um remédio para não dormir.
Com a receita na mão, parecia que a chave do destino de Gervásio finalmente iria virar. Mas para seu profundo descontentamento, foram muitas as finais em que ele viu, acordadíssimo, seu time vice-campeão. Os filhos e a esposa buscavam consolar argumentando sob a perspectiva de que o segundo colocado está à frente de muitos outros que não conseguiram chegar até ali. Mas Gervásio, que perdera tantos títulos abraçado a Morfeu, agora que havia encontrado a solução para vibrar, torcer e, principalmente, sofrer, queria ao menos uma vitória.
No dia seguinte às derrotas, o sorriso amarelo diante dos colegas e clientes mais próximos era por outro motivo. Ao menos ninguém iria chamar Gervásio de mau torcedor, pois o semblante de quem acompanhou cada tragédia estava lá, estampado, junto ao olhos pregados de quem não dormiu sob efeito de remédios e já fora empurrado pela rotina que começava poucas horas após o término da partida.
A esposa de Gervásio torcia muito para que o marido um dia tivesse novamente o gosto de ver ao vivo o time sagrar-se campeão. Durante as partidas, ele esbravejava a ponto de não deixar ninguém dormir, e ao final, chorava muito, chorava alto, sofria como um cão que uiva ao perder um ente querido. Assim, para conseguir dormir e manter o casamento vivo, em dias de jogos do Vasco ela tomava uma medicação para dormir.
Após anos de tentativas acordado para ver o time vencer, Gervásio confundiu a caixa de remédios e tomou o comprimido da esposa. Não deu tempo nem ouvir o apito inicial. Seria mais uma noite sofrida, outro vice-campeonato estadual. Mas não nos sonhos de Gervásio. Ele viu o Vasco vencer de goleada, 4 a 0 pra cima do Flamengo em pleno Maracanã. Viu o time levantar a taça, sorriu com a volta olímpica e a festa dos jogadores. Ao acordar no dia seguinte, estava tão radiante que tirou folga do trabalho para tomar café da manhã junto com a família. Ninguém entendia aquela situação, mas se Gervásio estava feliz, todos foram felizes juntos, num momento de reunião inesquecível.
Na consulta seguinte ao psiquiatra, Gervásio disse ao médico que o Vasco já morava no seu coração, e que agora a situação estava resolvida. Só queria trocar a medicação. Precisava era de remédio para dormir profundamente, pois essas histórias de vice e Série B não existiam no sonhar.