— Josemar, respira!
A voz do amigo e goleiro do seu time de pelada chegava abafada, vinda de lugar distante, como se tivesse percorrido um túnel, ricocheteando pelas paredes até chegar aos ouvidos do atacante, caído, sem pulso, sem respiração, para desespero daqueles peladeiros que tinham no meio-dia das quartas-feiras o único horário possível para encaixar na agenda concorrida do escritório, entre expediente, atendimento a clientes e reuniões que costumam se estender até mais tarde, a sagrada partida de futebol.
A pancada parece ter sido forte demais. Disputa de bola no ar, cabeça com cabeça. Um choque típico no futebol. Trágico e perigoso de forma que não distingue nível de talento com a bola e impõe a qualquer um o mesmo risco de uma lesão mais grave, seja o pior dos pernas-de-pau, ou o vencedor da Bola de Ouro.
Josemar não era muito de respirar. Seus pulmões realizavam o trabalho para o qual foram designados de forma mecânica, apenas para cumprir a mínima função cardiovascular necessária à manutenção da vida. Respirava sem se dar conta. A rotina de trabalho, escritório, contas a pagar, metas a atingir, clientes, funcionários, mais contas, empurravam o advogado a um estado em que ele apenas vivia.
As crises de ansiedade passaram a se tornar cada vez mais constantes. Junto com elas, vinha uma falta de ar insuportável, sufocante feito uma prisão escura, sem janelas, de teto baixo e ar quente, onde a única interação humana permitida é o abrir e fechar da fechadura na porta de ferro. O médico de Josemar recomendou atividade física. Ele reuniu colegas de trabalho que sofriam dos mesmos males e viviam rotinas semelhantemente claustrofóbicas. Decidiram que estrangular um almoço por semana não afetaria o ritmo de produção da montanha de petições.
A bola rolava quase sempre debaixo de um sol que por puro deboche era apelidado de “lua”. As exceções vinham somente quando a chuva dava o ar da graça, para a sorte dos peladeiros, pois a partida se tornava ao menos suportável.
O primeiro encontro até foi divertido. A decisão de jogar bola no meio do expediente, debaixo de um toró, sem olhar para o relógio e contando apenas o placar transportou aqueles engravatados aos tempos de meninos. A risada a cada escorregão, passe errado, chute a gol mal dado corria leve. Eram homens momentaneamente livres de suas próprias prisões, como quem se permite dançar com um amigo sem o compromisso de acertar os passos.
A partir do segundo jogo, o pensamento enquanto o cronômetro avançava se conectava ao escritório. Em vez de se concentrar na jogada, no drible sobre o adversário, Josemar lembrava de um ofício que deixara de redigir. Estava no campo apenas em presença física, enquanto sua mente viajava por encontros corporativos, obrigações, cafés e almoços.
A dificuldade começava pela necessidade em levantar a cabeça. Nos últimos tempos, para aumentar a produtividade, Josemar transportara parte do seu trabalho para a tela do telefone celular. Ali se misturavam compromissos, lazer, fotos de família e conversas fora de hora. Instalou-se a partir desse costume uma corcunda quase definitiva. Em campo, o agora atacante conseguia ver bem a bola, mas mal enxergava a direção do gol. Olhar não é a mesma coisa de ver. Assim como respirar.
— Josemar, respira pelo amor de Deus — dizia um colega de pelada já em súplica de oração diante do corpo caído, morto, no meio do campo.
Desta vez, a voz está mais perto. Ele sente a massagem no peito, abre os olhos, puxa o ar com força, sentindo um soco entrando pela boca e preenchendo todo o seu ser, tal qual um corpo de bailarinos, vívidos, orgânicos, que naturalmente se expandem e preenchem o palco. Diante dos seus olhos, via apenas um azul impenetrável e brilhante.
Desde o dia de sua quase morte, ou morte e vida, Josemar, que é ateu, todos os dias reverencia a beleza do céu. Ele para, olha para o alto e respira.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 10 de setembro de 2021.