por Felipe Gesteira*
Dona Jacinta rezava todos os dias pelos filhos e netos. Uma reza bem forte, empenhada, dedicada para que a sua fé se convertesse no sucesso dos familiares. Era a benzedeira mais famosa de toda a cidade, e se conseguia resolver problemas de difícil solução na família dos outros, não admitia de forma alguma que o mundo espiritual se recusasse a atender os pedidos para os seus.
Para o filho comerciante, a matriarca pedia que Oxóssi lhe caçasse fartura; para a filha advogada, que Xangô lhe desse sempre o favor da justiça para que ela dependesse apenas de seu próprio trabalho; para o neto cantor, pedia que Oxum lhe concedesse o brilho e a doçura; para a neta policial, que Ogum lhe guardasse; e para Augusto, seu neto mais novo, o dengo de vó, o menino que fora praticamente criado por ela, pedia que Exu lhe abrisse os caminhos para o gol na sua carreira de jogador de futebol.
Augusto era bom de bola que só ele. Desde menino tinha o chamado faro de gol, como se diz entre olheiros e profissionais do mundo da bola. Bastava a redonda cair no pé dele que o jovem matador sabia exatamente o que fazer. Dominava a pequena área como poucos, quase como de forma instintiva. De costas para o gol, ele parecia pressentir o lado correto do giro e para onde mandar a bola, num manejo perfeito de corpo, levando a pelota como se fosse uma extensão de si e projetando-a para dentro da meta.
O único porém na vida profissional de Augusto era o desconforto com as chuteiras. Nenhuma cabia nos seus pés de forma satisfatória por conta de um joanete exacerbado. Ele já havia sido aconselhado a procurar uma solução cirúrgica, mas o bendito joanete, aquele promontório posicionado na parte de dentro do pé, logo abaixo do dedão, era como se fosse uma marca de família. Os joanetes de Dona Jacinta eram conhecidos, vistos em todos os filhos e netos. Augusto retrucava, dizia que não iria se livrar dessa marca, que nunca deixou de fazer gol por conta disso, e que se o problema era somente conforto, jogaria sob a pressão da dor mas não se livraria de algo que o ligava à sua avó.
Para tentar aliviar a situação do atleta da família, Dona Jacinta confeccionou uma chuteira com suas próprias mãos. A cada ponto dado com linha e agulha no couro, a benzedeira fazia uma reza. Era como uma chuteira encantada, com as preces da matriarca e as bênçãos de todos os orixás, pretos velhos, índios, caboclos e demais povos encantados.
— Ficou perfeita, vó! — Dizia Augusto, que a partir dali não queria mais saber de calçar outra coisa para entrar em campo. No mesmo ano em que fez as chuteiras para seu neto, Dona Jacinta faleceu.
Entrava e saía temporada e Augusto não trocava suas chuteiras. Quem da família conhecia a história dizia que ele jogava melhor por conta da oração da avó. Mas o que nem Dona Jacinta sabia enquanto habitava neste planeta era que Augusto sempre fora ateu, e só curvava a cabeça para a ‘bença de vó’ por puro amor e respeito às crenças da mãe de sua mãe. Enquanto usou as chuteiras feitas por ela, não fez um único gol a mais do que sua média registrada quando não as usava. O conforto dos pés, no entanto, era indiscutível, mas só ele percebia.
Após mais de cinco anos usando o mesmo par de chuteiras, remendando, colando e ajustando como podia a costura, sempre como fizera sua avó, com as próprias mãos, elas começavam a dar sinais de cansaço. Estavam literalmente frouxas. Mas Augusto nem cogitava usar outra chuteira na final do campeonato, logo em partida única contra o maior rival. Foi o jogo inteiro ali, na pequena área, com as chuteiras escapulindo dos seus pés. O narrador da partida chegou a observar o problema. O roupeiro do clube ofereceu ajuda, mas ele recusava. No último minuto de um jogo duro, empatado, a bola cai no pé de Augusto, que mandou, literalmente, aquela sapatada. O ‘pombo sem asa’ foi duplo, pois do jeito que o atacante conseguiu mandar a bomba, voou também a chuteira, direto no rosto de um zagueiro, atrapalhando todo mundo enquanto a bola entrava no gol.
Na família, havia quem dissesse que o feito para a conquista do título fora sobrenatural. Augusto, que respeitava, porém não acreditava em nada disso, dizia que era só o carinho de quem sempre estivera ao seu lado.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 29 de abril de 2022.