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Rolimã

publicado: 26/08/2022 00h00, última modificação: 07/12/2022 09h39

por Felipe Gesteira*

Laurinha ouvia atenta a história contada no telejornal a respeito das crianças que organizaram uma competição de carrinhos de rolimã. Sua mãe se interessava mais pelo resultado do evento, alcance, metas atingidas, enquanto a pequena pouco entendia o que tudo aquilo significava, e se aproximava ainda mais da TV para tentar entender quais materiais haviam sido empregados na construção daquelas ‘máquinas’. 

— Se afasta da tela, menina! Faz mal assistir de tão perto — advertiu a mãe. 

A menina nem dava ouvidos. Estava paralisada. As imagens passavam à sua frente, mas ela só conseguia ver o futuro: a emoção de atingir alta velocidade em seu próprio carrinho. No seu sonho acordada também aparecia Guga, melhor amigo e comparsa para todas as traquinagens.

A relação entre Laurinha e Guga funcionava de forma unilateral, sempre ela mandando e ele obedecendo. Apesar de ser um pouco mais velho, a personalidade da menina se impunha ao moleque, fazendo com que ele sempre realizasse tudo o que ela desejava. Os vizinhos fuxicavam que os dois seriam um casal no futuro, mas não tinha nada a ver, era só amizade e servilismo, nada além disso. 

No caso do carrinho, estava claro desde o momento em que ela chegou para contar a novidade quem desempenharia cada função. Laurinha seria engenheira e pilota, enquanto Guga entraria na empreitada com a parte braçal da coisa, da construção e montagem do veículo até ser a pessoa que dá o primeiro empurrão para o embalo ser melhor. 

Foram dois meses inteiros de trabalho para construir o carrinho. O que chamava mais atenção era a meticulosidade no processo. Logo no começo foi um alvoroço na rua, todas as crianças empolgadas, querendo fazer também seus carrinhos. A diferença era que os outros ficavam prontos no mesmo dia. Enquanto isso, Guga reclamava, dizia que precisavam terminar, e ela, se portando como engenheira-chefe, respondia que só quando o projeto estivesse perfeito. 

No último teste realizado o carrinho atingiu em um pequeno pedaço de ladeira a mesma velocidade de uma bicicleta sendo pilotada por um adulto. Seria imbatível se fosse competir. Temendo pela segurança da melhor amiga, Guga adicionou um compartimento no qual ele se encaixava como copiloto. O protótipo saía um pouco mais lento na largada, mas logo embalava e ficava ainda mais rápido. 

Orgulhosa diante de sua obra, Laurinha decidiu subir até o morro mais alto da cidade. Guga alertou para o risco, mas ela queria viver a adrenalina. Não tinha medo se acontecesse de o carrinho capotar. As mães deles, coitadas, nem sonhavam com tamanha aventura. Foi numa tarde de domingo que os dois subiram a pé para descer sobre rodas.

O percurso de descida da ladeira dava 1km no total. Parece pouco para quem enfrenta com controle absoluto da situação, porém em cima de um carrinho de rolimã, a aventura era um pouco mais perigosa. A meninada do bairro que também tinha seus carrinhos subiu junto, mas logo ficaram para trás. Não se tratava de uma disputa, mas extraoficialmente, quem via Laurinha e Guga na dianteira logo vibrava. 

Tudo correu como planejado na aventura da dupla, com exceção da velocidade, que superou todas as expectativas, e dos freios, que não serviram de nada. No meio do caminho, para desviar de um cachorro vira-lata caramelo que dormia sob a sombra de um poste, Guga perdeu o controle e os dois desceram a ladeira fora da pista, ribanceira abaixo até o rio que passava ali perto. As águas levaram o carrinho e quase levavam também Laurinha, que não sabia nadar. Salvar a melhor amiga foi a última ordem cumprida por Guga, advinda por telepatia. Daquele dia em diante a menina desistiu de mandar. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 26 de agosto de 2022.