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Será um sonho?

publicado: 14/07/2023 00h00, última modificação: 17/07/2023 13h23

por Felipe Gesteira*

Seu Duarte tinha 18 anos de idade quando acompanhou pelo rádio o Brasil ser bicampeão do mundo, no Chile, em 1962. Torcedor apaixonado pela Seleção Brasileira, só um time no mundo despertava mais seu fervor do que o escrete canarinho em campo de verde e amarelo. A estrela solitária do Glorioso, o Botafogo, sempre acelerou seu coração. E aquele elenco, em especial, era de matar qualquer botafoguense de orgulho. Apesar do ufanismo com o necessário protagonismo de Garrincha diante da ausência de Pelé, e ainda nomes como Didi, Zagallo e Amarildo no elenco, era por outro representante do time carioca que Seu Duarte mais vibrava. A cada vez que Nílton Santos subia para o ataque, o então jovem torcedor cruzava os dedos e rezava como se não houvesse amanhã.

Hoje, perto de completar 80 anos, o coração de Seu Duarte ainda bate, e é por ele que a família decidiu manter os cuidados. Há 20 anos ele está em cima de uma cama, em coma, porém vivo. Os médicos desenganaram os familiares a respeito de qualquer expectativa sobre um possível despertar. Disseram que o caso agora é “com Deus”. E se, para ‘Ele’, nada é impossível, há esperança pela volta à ativa do velho torcedor. Foi assim, agarrados na fé que seus dois filhos mantiveram o tratamento, em casa, com todo o suporte hospitalar de sondas e demais aparelhos necessários para manutenção da vida naquele estado comumente chamado de vegetativo. Contra o termo depreciativo, seus filhos reagiram ao longo de muitos anos.

– Um vegetal comemora o gol de seu time de coração? Porque papai, sempre que o Botafogo faz um gol, seus batimentos ficam mais intensos. E não é doidice nossa, não. Quem diz é a máquina aqui – explicava José, o primogênito de Seu Duarte.

Assim foi por muitos anos. Filhos, amigos e netos se reuniam em torno de Seu Duarte nos domingos para assistir aos jogos do Botafogo. Comemoravam os gols, mas ficavam mesmo em polvorosa era com os batimentos cardíacos de quem, segundo eles, torcia de olhos fechados para, naquele estado entre o céu e o mundo terreno, interceder aos anjos pela volta das glórias há tanto perdidas.

Com a morte precoce dos dois filhos, vítimas de um acidente de carro, sobrou para os netos a missão de cuidar de Seu Duarte. Eles seguiam com quase todas as tarefas, num carinho pelo avô que praticamente já conheceram assim, desacordado. Não viam sentido em reunir amigos para assistir aos jogos após a perda dos pais. No entanto, mantinham a tradição de ligar a TV para que o avô pudesse acompanhar as partidas de onde sua consciência estivesse, neste ou em outro mundo.

Mesmo dormindo, Seu Duarte é presença viva na vida dos netos, e tratar dele representa muito mais do que um constante aprendizado sobre o cuidar de uns com os outros da família. Neste ano de 2023, com o Fogão líder isolado do Campeonato Brasileiro, Analice, a neta mais próxima, brinca com os demais dizendo que se os pais fossem vivos e aquelas reuniões para assistir aos jogos tivessem continuado, seria no mínimo diferente.

– Certeza que se vovô não acordasse, no mínimo levantaria um braço.

Bastou terminar a frase e ouvir um gemido, não como de dor, parecia reclamar por silêncio. Obviamente a televisão estava ligada para o jogo do Botafogo. Todos se voltaram para Seu Duarte, que parecia não ver mais ninguém. Ele olhava fixamente para a tela. Estavam todos paralisados à sua volta, perplexos. Um bando de desconhecidos para ele, que assistia à partida atentamente, e, ao final, desabafou:

– Será um sonho? Será que finalmente minhas preces foram ouvidas e colocaram Nílton Santos fixado no ataque?

Os netos tentavam puxar conversa, interagir. Ele parecia enxergar razoavelmente bem, mas sua audição dava sinais de estar fraca. Ouvia o que lhe diziam de perto, mas claramente havia acompanhado este último jogo somente pelo que podia captar das imagens.

Repetia, sorrindo feito bobo, “Nílton Santos de atacante!”.

Pelo bigode, o porte físico, a postura, a atitude em campo, pareciam iguais. Mas seu velho ‘novo’ herói, no entanto, se chama Tiquinho.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 14 de julho de 2023.