por Felipe Gesteira*
Somente uma pandemia foi capaz de afastar aquele grupo de peladeiros que religiosamente se reunia aos domingos para suar uma coisinha, mentir, tentar quebrar a bola, reclamar do juiz e, ao final de mais uma partida repleta de cenas lamentáveis, colocar a culpa pela derrota sempre no companheiro de time que estivesse mais próximo, tudo isso sob muitas risadas e à base de reidratação com cerveja gelada.
Não tinha batizado de netos que os fizesse faltar ao compromisso sagrado. Quem da família que quisesse a presença de um deles em algum evento no mesmo horário da pelada tinha que remarcar ou contar com a ausência. É bem verdade que bola, bola mesmo, já não jogavam mais. A disposição física dos anos 1970 não era a mesma, e há tempos haviam trocado o campo pela mesa de dominó, onde, já no bar, se instalavam para comer tripa assada e arengar pelas contagens de peças.
Mas a pandemia era mais que motivo para afastamento, era necessidade. Daquele grupo com sete integrantes, só três sobreviveram aos últimos anos. Dois foram vítimas da covid, se foram antes mesmo que chegasse a vacina; um de infarto; e o outro, segundo sua filha mais velha, morreu de tristeza. Sim, tristeza quando é muita mata feito doença implacável.
Para Adolfo, Diógenes e José, os três remanescentes dos peladeiros setentões agora craques no jogo de mesa, havia muita ansiedade pelo reencontro após dois anos afastados. A neta de Diógenes fez recomendações para que ele não se emocionasse, como se emoção fosse um botão de ligar e desligar que estivesse ao alcance de qualquer um. — Impossível, minha filha — disse o avô, do alto da experiência de quem nunca sequer tentou segurar emoção alguma ao longo da vida. Ela aceitou e botou um comprimido de AAS no bolso do velho jogador, para eventual emergência.
Se alguém temia um reencontro marcado pela tristeza, esse receio passou rápido. As fotos dos três chegavam quase em tempo real, enviadas pelo dono do bar aos familiares. Os peladeiros riam, se abraçavam, se beijavam, choravam muito! Vibravam pela vida e sorriam de saudade daqueles que não estavam mais por motivo de passagem. Celebravam com alegria a memória como se ali o time estivesse completo. Encerradas as preliminares, começam o leriado:
— Diógenes, fora aperreio de pandemia, como estão as coisas? — perguntou Adolfo.
— Ruim demais. Tudo mundo caro. Nem morrer a pessoa pode mais. Chega o fim de semana e não sobra dinheiro pra comprar uma picanha, fazer um churrasco, porque o preço da carne tá nas alturas. Horrível! Mas pior tá a situação de José.
— Mas dá pra ir ao supermercado e comprar uma cerveja pra tomar gelada em casa, num dá não?
— Dá nada! Deixei de sair pra comprar cerveja. Agora só peço delivery. Com o preço da gasolina, termina saindo mais caro. Tem gente dizendo por aí que baixou, mas baixou não, é ilusão. Tá menos cara, a verdade é essa. Até um dias desses pagávamos em torno de quatro reais o litro, chegamos a pagar sete, e agora tá em cinco. Pra mim tá um real mais cara. Mas pior tá a situação de José.
— Entendo, — emenda Adolfo — mas chegando a cerveja em casa, já que a picanha tá cara, tu assa um queijinho de coalho, num assa?
Diógenes quase se arretou com essa de um jeito que se a neta estivesse por perto teria ficado preocupada com as emoções do avô.
— Homem, pelo amor de Deus. Tu parece num vive no Brasil. Já visse o preço do queijo? Tá horrível! A pessoa vai fazer feira e só dá vontade de chorar. Vai ver o preço de uma caixa de leite. Tem condições não! Mas pior ainda está a situação de José.
Adolfo ouvia curioso, enquanto José com tudo consentia. Sem entender a piada implícita e com pouca paciência para esperar, Adolfo resolve romper o mistério.
— E por que a situação de José tá pior?
— Porque pra ele, que assim como nós também vive no Brasil, a carne está mais cara, a gasolina está mais cara, o leite está mais caro, e achando pouco sofrer com tudo isso, insiste em ainda torcer pelo Vasco!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 23 de setembro de 2022.