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Sovaco legal

publicado: 02/09/2022 09h13, última modificação: 16/09/2022 10h56

por Felipe Gesteira*

Além de religiosa fervorosa e ultraconservadora, Dona Berenice fazia questão de manter junto aos descendentes o regime ditado em vida por Júlio, seu marido e grande amor. Máximo respeito era a norma da casa. Homem nenhum perambulava sem camisa, podia fazer o calor que fosse. Sentar à mesa semidespido era ofensa gravíssima. Nem o pão podia ser aberto com as mãos, pois o patriarca quando vivo achava um desaforo rasgar o alimento sagrado com os dedos enquanto a faca repousava sem uso.

“Costume de casa vai à praça”, dizia a matrona sempre que alguém intercedia para que ficassem mais à vontade em casa. Da mesma forma como eram rígidos os costumes, a educação dada às filhas e aos netos seguia o mesmo rigor. E se nem as coisas mais corriqueiras passavam batido, pode-se afirmar que aquilo o que para ‘o povo da rua’ era considerado grave, Dona Berenice tinha como pecado. 

Criança falando palavrão, por exemplo, ela ameaçava lavar a boca com sabão. A prática acontecia muito antes das instituições que guardam os direitos das crianças terem acesso aos bairros de periferia. A história mais pitoresca contada na família aconteceu com a segunda filha, Lalá, que aos 7 anos levou uma surra de Dona Berenice somente porque perguntou à mãe o que era “roupa de gala”. 

Atento a todos esses perigos, João não arriscava chamar palavrão nem fora de casa, entre amigos e longe das vistas da avó. O medo dele era que o mantra proferido pela matriarca se cumprisse de forma inversa e, assim, o costume da rua fosse praticado em casa. A maior dificuldade de segurar a língua era na quadra. João jogava basquete no mesmo bairro onde morava sua avó, ao lado de seu sempre parceiro na dupla das peladas de garrafão, Alex Cool, que antes era só Alex, mas ganhou o complemento após a passagem de um gringo pelo bairro. De tanto ouvirem o gringo falar “cool”, foram atrás e descobriram que “cool” em inglês quer dizer “legal”. Assim apelidaram o amigo, que era mesmo o mais legal da turma.

E o que o basquete tem a ver com os termos de baixo calão? É que Alex Cool despertava o ímpeto pelo pior palavreado dos adversários. Sempre que levantava os braços para marcar alguém, o forte odor exalado desaprumava quem estava sendo marcado. Soltar um palavrão no momento era o mínimo, pois teve caso de jogador perder até a bola diante do poder da catinga. 

A sorte de João era estar sempre do mesmo lado de Alex. Enquanto os adversários sentiam náuseas causadas pelo parceiro, ele passava fino até a cesta. A dupla era difícil de bater, e além disso, intocável. Não tinha quem desmanchasse aquela formação, até o dia em que João se atrasou.

Alex esperou foi muito. Duas partidas aconteceram enquanto seu parceiro não chegava. Na terceira, um jogador se machucou e faltava só um para completar o jogo. Alex entrou em outra dupla, João chegou, mas com a vitória do seu aliado de sempre, os vencedores continuam, e pela primeira vez eles foram adversários na rodada seguinte. 

Sob o sol das 14h30, Alex já estava todo suado. João tremia só de pensar na inhaca. Com a carne de charque do almoço ainda não bem digerida, partiu com a bola pra cima do amigo defensor. Bastou uma levantada de braços para desanimar a partida. O odor não era de uma sovaqueira comum, não. Mesmo que intensa, João esperava que viesse um fedor azedo. Mas não, era podre, digno de um monossílabo fedido. 

Indignado com a situação, mas sem querer magoar o amigo, João disparou:

— Alex, caramba, sem condições. Isso daqui é um sovacool!

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 2 de setembro de 2022.