Os 10 primeiros que fizerem um pix no valor de R$ 5 receberão de volta R$ 5 mil”. A voz do narrador sobreposta à narração oficial da partida insiste para que o espectador atente à proposta que parece irrecusável, afinal, qualquer pessoa aproveitaria a oportunidade de multiplicar um valor por 1.000 e receber o crédito na conta bancária, limpinho de impostos. É tão fácil que chega a ser gritante o golpe, mas, ainda assim, tem quem caia. Essas “promoções” são ofertadas ostensivamente durante as transmissões de partidas de futebol em tela torta. E se você assiste a jogos de ligas variadas e nunca se deparou com uma tela torta, considere-se um privilegiado.
Sim, são transmissões piratas. Os contraventores pegam a transmissão de um canal pago e retransmitem de graça via YouTube. Se fizerem a retransmissão exatamente como o canal que detém os direitos autorais, o algoritmo do YouTube identifica e derruba a transmissão imediatamente. Para driblar o sistema, o pirata entorta a tela e preenche os espaços vazios com códigos de barras para transferências bancárias. Demais espaços são ocupados com chamadas para anúncios induzindo a diversos golpes financeiros.
Apesar de ainda ter quem caia no golpe, há quem perceba e tão somente utilize a transmissão para assistir à partida sendo exibida com qualidade deteriorada, pois à medida que parte da tela é ocupada para exibir as chamadas dos golpes, o conteúdo é escondido. E toda vez que o dono da transmissão pirata fala, o áudio do narrador da partida fica mudo. Sem contar o principal: a tela é torta. Mesmo assim, diante de tantas desvantagens, muitos espectadores que não têm condições financeiras para pagar um canal de TV a cabo ou assinar um por streaming ainda consideram que assistir assim é melhor que nada.
Dia desses falei aqui neste espaço sobre a democratização das transmissões de futebol e demais competições esportivas com o advento da internet. O que antes só ‘passava’ na TV fechada, hoje está aberto na rede, nem que seja por meio da trágica tela torta, que serviu para impor novo ritmo ao mercado. Se o canal buscava como fonte de financiamento a assinatura, hoje percebe que é melhor focar na audiência e ter números consistentes para apresentar aos patrocinadores. A lógica da transmissão via internet deu aos investidores da comunicação o mesmo poder dos detentores das concessões de TV aberta.
Deixando de lado a tela torta, é possível assistir a campeonatos estaduais e ligas internacionais com qualidade de transmissão impecável. O Campeonato Alemão está de graça, pra quem quiser, e a propaganda do canal que o transmite diz “aqui você assiste em tela reta e sem ninguém te pedir pix”. Da mesma forma, estaduais que jamais foram transmitidos hoje estão na internet.
A tela torta e seus números expressivos de audiência mesmo com uma transmissão péssima serviu também para dizer o óbvio: somos um país pobre, em que uma grande parcela não pode pagar por TV a cabo. O mercado entende o interesse e reconfigura os modos de venda. O principal ativo continua sendo o tempo das pessoas.
* Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 29 de março de 2024.