O pó branco espalhado por toda a roupa, sobre os pêlos, cabelos, entranhado na pele, entrega a função desempenhada por Ademar. A branquitude paira até nos seus cílios. O que parece incômodo para um observador que o vê com certo preconceito para ele é orgulho, pois foi mexendo com gesso que o trabalhador sustentou sua casa, criou e educou quatro filhos. São mais de 30 anos de trabalho ininterrupto, e há quem diga que ele já pode parar, mas o bom gesseiro argumenta que o corpo é como uma bicicleta, e não para com receio de enferrujar.
A verdade é que ele nunca conseguiu fazer um pé de meia para sua aposentadoria. E por mais que a profissão que o manteve ativo seja extremamente rentável, sua extrema timidez o impediu de evoluir comercialmente. Enquanto colegas fechavam contratos com clientes mais diversos, ele, apesar de mais hábil e igualmente experiente, por mal conseguir falar, mantinha-se como auxiliar, e assim, injustamente, via os outros lucrando sobre seu serviço.
— Ademar nunca soube ganhar dinheiro — reclama sua esposa. Os filhos saem logo em defesa: “Deixe painho”. Agora velho, ele continua a trabalhar para os outros, mas com a vida ‘ganha’, pois as despesas diminuíram quando as crianças cresceram e saíram de casa. Ele só se importa em ter o que comer e tempo para ficar com quem ama e lhe aguentou a vida toda. Além desse básico, luxo é “ir para o campo”, a forma como ele diz que vai ao estádio no domingo ver seu time jogar.
Ademar ouviu durante a semana que o time precisava do apoio da torcida para se classificar no quadrangular final e conseguir o tão sonhado acesso para a divisão superior. Diziam os radialistas que se tratava do “time do povo”. Sendo assim, pensava, irão baixar o preço do ingresso.
Por viver com o dinheiro contado, há anos o velho torcedor não conseguia se fazer presente na arquibancada. Se os filhos sonhassem que este era seu desejo, prontamente comprariam sua entrada. Mas a timidez crônica o impedia de expressar qualquer vontade.
Ele decidiu então economizar na feira. Nem sua esposa poderia saber da artimanha feita em nome do amor por um clube de futebol. Passou a comer menos, mas sem que fizesse falta à sua companheira. Ela percebia Ademar fastioso, e ele desconversava, dizia ter lanchado no serviço. A margem para economizar era pouca, mas de grão em grão, juntou dez reais. Lembrava que o preço de um ingresso ‘popular’ nunca passou disso.
Na sexta, saindo do trabalho, foi direto à lojinha, perto do estádio. Encostou sua bicicleta barra-circular vermelha, que tal como ele estava toda salpicada de pó branco, se aproximou da bilheteria, puxou a nota da carteira, uma cédula com cheiro de nova, perguntou quanto custava o ingresso na arquibancada sol.
— Vinte — respondeu o atendente, secamente.
Subitamente triste, Ademar subiu na bicicleta. Ele não fazia parte do “povo”.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 06 de outubro de 2023.