Torcer por um time de futebol é indiscutivelmente um ato de amor. Nunca “a sorte de um amor tranquilo”, como sonhava Cazuza, mas sempre algum remédio que dê alegria, ainda parafraseando um dos maiores compositores da música brasileira. Torcer é sofrer, sonhar, viver. Na alegria e na dor, amor não se escolhe, acontece. O amor dos torcedores paraibanos pelo Flamengo na visita do clube a João Pessoa foi bonito de se ver, apesar dos diversos protestos. Há relações complexas no episódio que envolvem clube, torcida, gestão do poder público e manifestantes contrários ao evento.
Da parte do clube, enviar um elenco repleto de desconhecidos para um jogo festivo foi no mínimo desrespeitoso com os torcedores. Se a ideia de realizar partidas do Campeonato Carioca fora do estado já é questionável pelo simples fato de ser um estadual, morre junto a justificativa de levar o time para perto da torcida. Que time? O escudo? As camisas? Com todo respeito aos jogadores que enfrentaram o Nova Iguaçu no Almeidão, mas quem torce acompanhando seu time pela televisão e tem uma oportunidade única de vê-lo de perto gostaria de ter visto ao menos parte dos ídolos. Dois craques do elenco principal que viessem dar o ar da graça teriam deixado o torcedor rubro-negro em êxtase. Nem Tite veio.
A torcida fez sua parte, provando que amor não tem medida. Mesmo após ter sido divulgado que o time principal estaria nos Estados Unidos, o flamenguista que mora em João Pessoa e nas cidades por perto não contou conversa. Foi casa cheia, mesmo com o valor dos ingressos nas alturas. O Governo da Paraíba fez sua parte arrumando o Almeidão. Apesar da polêmica sobre as novas cores do estádio com a pintura rubro-negra supostamente terem sido em homenagem ao visitante ilustre, ficou evidente tratar-se de uma infeliz coincidência. As cores são as mesmas da bandeira da Paraíba e, caso alguém ousasse fazer uma ilação, o gestor que toma conta do Almeidão sequer é flamenguista, ao contrário, torce pelo Vasco. Ademais, o estádio é de todo o povo paraibano, não dos clubes sediados na capital que usam o equipamento público como mandantes.
O descaso do Flamengo com os paraibanos só não foi mais feio do que a reação de parte da torcida do Botafogo contra seus conterrâneos que decidiram em algum momento da vida torcer pelo Flamengo. Antes de adentrar na polêmica, voltemos à primeira questão. Amor se escolhe? Eu digo que acontece. Depois, sim, há uma escolha diária. Escolhemos permanecer com quem amamos, fomentamos esse amor. Mas de início o amor te toma de assalto, quase um arrebatamento. É difícil olhar para trás e lembrar em que momento o coração pela primeira vez acelerou por aquele amor.
A defesa bairrista da torcida pelo time da cidade desconsidera diversos fatores sociais e influências históricas. Além disso, apequena o amor a uma escolha, como se escolher com quem vamos viver fosse a mesma coisa que pegar um produto na prateleira. Interessante ressaltar que só uma parte dos torcedores do Belo protestou contra o jogo do Flamengo porque a grande maioria da outra parte não foi contra exatamente porque torce pelo time carioca. Os torcedores que têm dois amores são chamados por essa ala da torcida do Belo de “mistos”.
Triste é a forma pejorativa como torcedores tentam atacar seus iguais. Parecem divisões de fiéis de uma mesma religião, adoradores do mesmo deus, mas que se julgam melhores que os outros, como se, existindo um céu, tivessem acesso antecipado. Todo protesto é digno, mas atacar a forma do outro de amar não vai fazer com que ele tenha empatia por sua causa, e isso vale para além do futebol. Melhor é amar e deixar amar. De intranquilos já bastam os 90 minutos.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 26 de janeiro de 2024.