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Torcedor espectador

publicado: 05/04/2024 09h41, última modificação: 05/04/2024 09h41

por Felipe Gesteira*

Seu Adolfo nunca teve time, mas se intitulava como o “torcedor original”, ou o mais puro, mais fiel, primeiro de todos. A lista de adjetivos e autodenominações era extensa quando ele começava a se vangloriar da sua capacidade de torcer por um dos lados numa disputa. Isso porque dizia que quem torce só por um time, no dia que o clube não joga, fica sem torcer, muitas vezes nem liga a TV, deixando de lado uma infinidade de possibilidades emocionantes que se revelam em uma partida. Seu Adolfo dizia que quem torce só por um time não é torcedor, é fã. Quando ia ao estádio, por exemplo, ele dizia em casa que iria torcer “no campo”, independentemente de quem fosse jogar. A programação era sobre o evento, nunca em função dos envolvidos.

Dos três filhos de Adolfo, somente um seguiu caminho semelhante. Adolfo Segundo virou fã do Flamengo, como dizia o pai, enquanto Roberta é fã do Botafogo e, apesar do time de coração, ao menos encontrou sorte no amor. Aquiles, não, assiste a tudo quando é confronto. De futebol a basquete, vôlei de praia, luta de sumô, peteca.. onde duas ou mais pessoas estiverem reunidas em oposição, lá ele estará. No início o pai tinha orgulho do filho, que o acompanhava e não deixava passar nada, até perceber que Aquiles pouco se emocionava. Assistia a tudo incólume, como se nada estivesse a acontecer, ou o resultado fosse previsível, mesmo que ao vivo. Se mantinha diante de uma partida da mesma forma que alguém frente a uma obra de arte ou espetáculo da natureza: tocado, apenas.

Em resposta às reclamações do pai, Aquiles dizia ser sua versão melhorada, pois ao tempo em que não desperdiçava nenhuma experiência, também não se envolvia pela pressão de escolher lado. Seu Adolfo o chamava de “murista”, enquanto ele se intitulava “torcedor espectador”.

Numa manhã de quarta-feira, comum como qualquer outra, Aquiles saiu cedo de bicicleta para deixar o filho na escola. Ao se aproximar de um cruzamento extremamente movimentado e que há pouco passara por uma mudança no sentido do tráfego, pai e filho se deparam com um grave acidente: um carro que vinha na preferencial acerta em cheio um furgão que furou a placa de “pare”. O estrondo acordou o bairro inteiro. O motorista do carro desce e tira uma criança pequena do banco de trás. O condutor do furgão, responsável por causar o acidente, capotou o veículo e conseguiu sair com ajuda. Logo uma multidão se formou para dar opinião, dizer quem tinha razão e acalmar a criança de colo envolvida no acidente, que chorava mais a cada vez que era tocada por um desconhecido. Também chegaram guardas de trânsito, equipe de TV, e Aquiles, animado para assistir a tudo, quase perde a hora do filho na escola. Acelerou no pedal confiante que conseguiria pegar o ‘segundo tempo’ na volta.

Aquiles foi tão rápido quanto pôde. Ao retornar, a multidão já havia se dispersado. O motorista do furgão fora embora com o primeiro reboque. O outro, após deixar a criança em casa, estava lá de volta, enquanto o carro era guinchado. Aquiles encostou a bicicleta, pegou um latão de cerveja na conveniência que ficava na esquina do acidente, abriu, deu o primeiro gole, sentou na cadeira de balanço de fio posicionada como estava, sob o sol da manhã, de frente para a cena que se encerrava. Deu o segundo gole, pôs a lata no chão e assistiu ao fim do último reboque.

 *Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 05 de abril de 2024.