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Torcida no táxi

publicado: 16/12/2022 00h00, última modificação: 19/12/2022 10h43

por Felipe Gesteira*

Na pequena Puerto Iguazu, cidade argentina que faz fronteira com o Brasil na altura do estado do Paraná, o jovem Ezequiel trabalha como taxista, e além do labor no volante, faz também as vezes de guia turístico. Como o município se sustenta quase que exclusivamente do turismo e a grande maioria de seus passageiros pede dicas sobre lugares para visitar, comer, se divertir, seu serviço de transporte agrega também o de informações. E quando perguntam qual o melhor lado para se conhecer as Cataratas do Iguaçu, ele responde sem qualquer bairrismo, diz que o passeio argentino é mais bonito, porém como há um trecho interditado por motivo de reforma, recomenda a visita pelo lado brasileiro mesmo.

A postura do motorista que tem cara de adolescente e dirige com a tranquilidade de um condutor com mais de 30 anos de rodagem chama atenção pela maturidade. Mas quando o assunto futebol entra em pauta no carro, os olhos de Ezequiel acendem. Novamente, sem rivalidade. Ele sorri para os brasileiros a respeito da Seleção de Neymar, mas não os vê como rivais, pois, apesar de guardar algum respeito, acredita que o time liderado pelo gênio Lionel Messi é muito superior.

Durante a Copa do Mundo, a ansiedade de Ezequiel fica ainda mais evidente. Ele não esconde que sua paixão na verdade é pelo Boca Juniors. Apesar de não puxar o tema na conversa, deixa escapar quando pega o celular para consultar um mapa e salta aos olhos a proteção de tela com o escudo do time.

Nos dias de jogos, ele veste a camisa da Argentina, mas não pode se dar o luxo de ficar em casa, pois como a cidade sequer tem o serviço de motoristas por aplicativo, a demanda por táxis é muito grande. Enquanto espera por uma nova corrida, assiste aos jogos pela tela do telefone celular. Com passageiros no carro, a atenção é total, nem um rádio fica ligado. Ele sua frio por não saber a quantas anda a partida, observa nas ruas, procura com os ouvidos selecionar os ruídos mais distantes a fim de encontrar um grito de gol, um urro sequer.

A dificuldade para se desconectar do futebol não atrapalha a habilidade de Ezequiel na condução do veículo. Mesmo diante dos estampidos e gritos de gol aqui e acolá, ele segue dirigindo macio, embreagem na manha, e ainda prestando todos os esclarecimentos acerca dos roteiros turísticos da cidade.

Após a partida contra a Polônia, a ficha de Ezequiel sobre a classificação para a fase de grupos em primeiro lugar só caiu de fato quando ele chegou em casa. Claro que no vaivém entre uma corrida e outra já sabia do resultado, mas a percepção do alívio e a euforia no semblante de seus familiares o colocaram num êxtase que fizeram o taxista prometer tirar folga no confronto seguinte, contra a Austrália.

O que torna o sonho de Ezequiel inexequível é a dificuldade de fechar as contas. E como dinheiro não se fabrica, ele põe novamente sua camisa da Argentina e sai para trabalhar. Na rotina do dia, insere uma fervorosa oração em forma de torcida para que na hora do jogo, os passageiros sejam argentinos, pois acredita que um turista de Buenos Aires não resistiria a ter uma tela dentro do carro com transmissão da partida, enquanto um brasileiro pouco se importaria por considerar, talvez, que a disputa já estivesse resolvida, ou mesmo pela rivalidade criada e sustentada principalmente pela mídia do Brasil.

O dia de trabalho do jovem taxista se desenhava como um céu trancado de chuva para quem precisa vender picolés na praia. A proporção rotineira de metade de passageiros argentinos havia se convertido até perto da hora do início do jogo para uma inesperada totalidade de brasileiros. A angústia de Ezequiel crescia, até que chega o momento da partida, um casal se aproxima e pergunta, em português, quanto custa a viagem até o aeroporto de Foz do Iguaçu. Ao tempo que responde o valor lembrando do quanto precisa estar ali, seus ombros desabam em tristeza, interrompida no momento em que a mulher, já acomodada no banco de trás, arrebata sua alegria de volta, pois, também apaixonada por futebol em todas as instâncias, pergunta se não tem jeito de ligar uma TV no carro pra assistirem à “vitória da Argentina”.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 16 de dezembro de 2022.