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Torcida pelo tempo

publicado: 14/01/2022 08h00, última modificação: 21/01/2022 10h01

por Felipe Gesteira*

Há alguém nesse mundo que não torça por nada, nadinha mesmo? Duvido. 

Todo mundo torce. E torcer que eu digo não é no sentido de desejar boa sorte, apenas, ou o sucesso de alguém na vida. Falo de torcer de forma competitiva, por algo em oposição a um oponente. Torcer pra ganhar.

Seja time de futebol, vôlei, basquete, automobilismo. Seja de forma mais branda, como aquela torcida afetiva pelo time do avô, que quando perde, o torcedor não sofre, mas se ganha, arranca-lhe um sorriso de canto de boca. Pode ser a maior disputa do planeta, final de Copa do Mundo, ou um par ou ímpar entre dois primos. Em todo lugar onde há competição, há também alguém torcendo. 

Dona Berenice, sempre do contra, dizia que não, que não torcia por nada nesse mundo. Dizia que era tudo uma besteira, que tanto fazia se ganhasse Brasil ou Argentina, e dizia ainda que a única torcida dela era para “Jesus”.

O filho de Deus, no entanto, não compete em coisa alguma. E Dona Berenice, evangélica fervorosa, torcia, sim, mesmo sem perceber, num esporte que ela mesma criara para torcer. 

Bastava começar o Jornal Nacional para Dona Berenice se aprumar na cadeira. Ela assistia às notícias do Brasil e do mundo com a ansiedade de que chegasse a melhor parte. Na política, olhava tudo com desdém, assim como nos esportes. Quando o apresentador anunciava a previsão do tempo, a senhorinha apertava com força os braços da cadeira onde estava sentada como se estivesse se preparando para assistir a uma disputa de pênaltis em jogo de mata-mata. E se o repórter ‘homem do tempo’ dissesse que na região dela a previsão era de dia ensolarado, ela olhava para cima e disparava em voz alta um pedido:

— Faz chover, Jesus! — dizia em mistura de oração, súplica e torcida.

Qualquer que fosse a previsão anunciada no telejornal, Dona Berenice torcia contra. E passava o dia seguinte inteiro atocaiando o céu na expectativa de que Jesus, seu atleta escolhido em oposição aos meteorologistas, vencesse a disputa. Arranjava o que fazer no quintal, varria a calçada duas, três vezes, aguava as plantas. E se faltasse serviço, ficava espiando por cima do muro. A vizinhança jurava que ela estava a observar o movimento para colher material de fofoca, mas era só o seu esporte mesmo, torcer pelo tempo. Era como se o céu fosse um grande campo no qual se enfrentavam diariamente a ciência e o sagrado. 

A melhor parte é que este embate acontecia somente na cabeça dela. Para Dona Berenice, tentar ‘adivinhar’ o tempo era ultrajar o divino. E torcia com afinco, como se Deus não tivesse mais o que fazer do que desmoralizar os telejornais. 

Se a previsão fosse de chuva, ela tinha tanta fé que saía de casa sem sombrinha. Dizia que o jornal não sabia de nada, e vibrava pelo sol de rachar. À noite, quando o homem do tempo aparecia, ela fazia questão de cornetar pelo erro anterior antes mesmo que ele pudesse dar a previsão do dia seguinte. 

— Num dissesse que ia ser chuva, guenzo! Cadê? Sabe de nada! — e dava uma piscadela para cima, emendando uma conversa — Muito bem, Jesus!

 Certo dia, após nova previsão de chuva e teimosia de Dona Berenice em sair sem sombrinha, caiu um temporal. Ela chegou em casa encharcada, desolada. Naquela noite nem quis assistir ao telejornal. Dias depois, os embates continuaram, mas ela passou a sair com uma ‘proteção’ na bolsa além de sua bíblia, fosse a previsão de chuva e o telejornal estivesse certo, ou de sol e “Jesus” quisesse contrariar. Aos netos, que questionavam o porquê dela sair sempre com sombrinha, dizia que “uma mulher prevenida vale por duas”. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 14 de janeiro de 2022.