por Felipe Gesteira*
Há poucas cenas tão difíceis de se encarar quanto ver uma pessoa comendo no lixo o alimento jogado fora por estar estragado. Catar o que comer de onde não há quase nada que se aproveite é a última instância da sobrevivência humana, pois se busca encontrar nos restos do que a sociedade descarta quando o trabalho, a esperança e a dignidade já se perderam completamente.
Reginaldo acompanhava o pai, Seu Régis, no trabalho de buscar o que comer para a mãe e seus cinco irmãos que viviam no lixão. As bananas com as cascas completamente pretas, se abrindo e espumando, eram aproveitadas. Mangas, abacaxis e toda sorte de frutas minimamente protegidas por cascas tinham uma resistência maior, dizia o pai, ensinando ainda que aquele cheiro que os outros diziam ser azedo não queria dizer que a comida estivesse ruim. Na verdade eles sequer sentiam o cheiro. Seu Régis separava o que estivesse em melhores condições para casa e comia ali mesmo, no lixo, o que não se aproveitava de jeito nenhum. Era como um ato de amor em favor de sua família, assim chegava em casa de barriga forrada, trazendo para os outros o que era melhor.
O pequeno Reginaldo via a resignação do pai, mas não conseguia segui-lo em tudo porque seu velho não o deixava comer das mesmas coisas, se expor aos mesmos riscos. Para atenuar a dor da vida, o menino decidiu brincar, e também no lixo encontrava seus brinquedos.
Todo pedaço de pano, trapo, meia, virava bola para jogar com as outras crianças da comunidade; de gravetos e papéis velhos ele fazia pipas; das caixas de leite, latas, tampas e garrafas pet Reginaldo construía robôs e maquinários que povoavam a imaginação daquelas crianças. A tristeza instalada pela dificuldade constante era aliviada naquele mundo onde o lixo descartado se transformava em pura fantasia.
Mas apesar do empenho do menino em catar, transformar e criar brinquedos e cenários para que todos se divertissem, a fome insistia em puxar as crianças ao desânimo. Se contra a fome Reginaldo não tinha forças para lutar, era com sua engenhosidade que ele se armava. Percebeu que criar histórias não era suficiente para para entreter as crianças. Eles precisavam de algo que promovesse um engajamento maior.
Reginaldo revirou montanhas de lixo em busca de pranchas, tábuas, rodas, latas e demais artefatos esféricos com os quais ele pudesse construir carros. A ideia do menino era ir além do famoso rolimã e fazer verdadeiros protótipos de corrida, reunir as crianças em equipes e fazer uma verdadeira competição envolvendo pilotos e engenheiros.
Para não favorecer ninguém, ele entraria apenas como organizador da corrida, visto que se fosse o próprio engenheiro ou piloto seria tratado pelos outros como garapeiro. E a proposta de Reginaldo não era vencer, mas entreter seus amigos para que, ao menos por um pedaço de dia, pudessem esquecer a dor de não ter o que comer todos os dias.
Na rua de dentro era impossível fazer a corrida por conta dos esgotos a céu aberto. Reginaldo montou a pista do lado de fora, num descampado de frente à avenida do bairro que dava acesso ao centro da cidade. Por tamanho rebuliço de pista, carros e crianças, a cena chamava atenção de quem passava por ali, e assim atraiu uma equipe de reportagem do jornal local, que foi saber do que se tratava, entrevistou o menino organizador e plantou a notícia do evento que estava para acontecer dali a dois dias.
Hoje adulto e engenheiro bem sucedido, Reginaldo conta sem modéstia que a corrida teve mais disputa do que uma etapa do Grande Prêmio de Mônaco nos tempos de Ayrton Senna e Alain Prost, com roda a roda, bico a bico, para definição do carro vencedor.
O melhor de tudo é que a meta de distração foi plenamente alcançada, mas o que Reginaldo não esperava era que com a visibilidade a partir da reportagem, o evento atraiu uma multidão que, comovida com a história, levou alimentos para a comunidade. Naquele fim de semana as crianças e suas famílias viveram o êxtase do que é ter felicidade sem um pingo de fome.