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Túnel

publicado: 10/03/2023 00h00, última modificação: 10/03/2023 11h53

tags: Felipe Gesteira

por Felipe Gesteira*

Amarrar o cadarço da chuteira se tornou uma das atividades mais difíceis nos últimos anos. As pernas continuam fortes, apesar de os comentaristas esportivos repetidamente dizerem que ele está velho para ser o atacante de referência da equipe. As pontas dos dedos, no entanto, pararam de responder como antes. A perda de sensibilidade dificulta a resolução de tarefas simples. O médico diagnosticou como síndrome do túnel do carpo, a mesma doença que impediu sua mãe de continuar o trabalho como costureira até o fim da vida e fez com que o futebol se tornasse sustento para toda a família.

No começo da carreira ele chegou a ser comparado com Adriano, o Imperador. Ambos tinham a mesma idade e há quem jure até hoje que, enquanto contemporâneos, atuavam no mesmo nível. Mas as diferenças começavam na estrutura, pois o mais famoso jogava pelo maior time do Brasil, o Flamengo, e assim recebia atenção da grande mídia especializada.

Pelo interior do Nordeste, defendendo as cores de um time que representa uma cidade com menos de cem mil habitantes, o atacante não teve a mesma sorte de seu colega. Os críticos eram muito mais duros quando havia uma falha do que benevolentes nos dias em que ele decidia as partidas. E quando alguém o comparava com Adriano, contra-argumentavam que jogar contra times pequenos é mais fácil, por isso tantos gols. Ora, gol é gol em todo lugar, ele dizia para si, indignado, mas sem nunca rebater nenhuma crítica publicamente. 

Não foi vendido para um gigante Europeu, não foi convocado para a Seleção Brasileira. Sequer saiu da cidade onde faz história como maior goleador e atacante mais longevo pelo clube. Como seu time nunca conseguiu vencer um estadual, o máximo que ele alcançou foi o prêmio de melhor jogador do campeonato, além de seguidas conquistas de artilheiro da competição. Ele se comparava a Cristiano Ronaldo, nos anos em que o português perdeu o título de melhor do mundo para Messi, porém venceu o de maior goleador da temporada. Bola no fundo da rede ninguém contesta, é número, ele dizia.

Hoje, aos 38 anos de idade e com uma carreira cheia de expectativas frustradas por não ter sido aquilo que projetaram para ele, os ditos fracassos abalam sua autoestima. Para todo menino pobre que se torna jogador de futebol há um Ronaldo a ser perseguido, como se exceções fossem plenamente alcançáveis. Para cada craque que saiu da favela e conseguiu se tornar um milionário de sucesso há milhares que perambulam entre as divisões de acesso e ficam pelo caminho por falta de estrutura, cuidados médicos e até alimentação insuficiente. No Nordeste a matemática chega a ser ainda mais injusta.

Certa vez, num único desabafo, ele disse que queria ter a oportunidade que teve Adriano. Cuidava do corpo como podia, não bebia, dormia cedo sempre e tinha como foco, além de vencer por seu time, sustentar a família de mãe viúva e oito irmãos. Talvez, com os mesmos espaços do craque carioca, tivesse sucumbido por caminho semelhante. É fácil olhar de fora e dizer que fulano faria melhor, principalmente quando se mira o passado. Cada realidade é uma e cada qual sabe a dor que passa.

Mas então, o que é sucesso? A pergunta que martela sua cabeça a cada ano em que os radialistas perguntam por sua aposentadoria enquanto a torcida pede por mais uma temporada segue sem resposta. Como num filme, ele relembra cada gol, revive as comemorações junto à arquibancada, sorri com a memória das pessoas na cidade o cumprimentando no dia seguinte pela entrega, mesmo quando seu time perdia. Lembrou do dia em que uma criança doente se alegrou com sua visita ao hospital e apresentou melhora, pois tinha a alegria de receber um ídolo. Conclui que é feliz por fazer muitos felizes. Mais uma vez ele olha para o túnel que dá acesso ao campo, termina de amarrar os cadarços e sobe.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 10 de março de 2023.