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Uma dor de cada vez

publicado: 07/12/2021 09h14, última modificação: 07/12/2021 09h14

por Felipe Gesteira*

Duas dores não ocupam conjuntamente a mesma mente. A dor predominante sobressai, nem que seja momentaneamente. Não necessariamente uma dor maior, na maioria das vezes não é, porém é a dor recém-chegada, ou provocada propositalmente para fazer com que aquela outra, insistente, moradora do corpo já tão combalido pelo sofrimento, saia de cena por alguns instantes, dando vez à nova, da exaustão, do esforço limite, do prazer que se alcança por meio desta dor que, longe de ser masoquismo, é alívio físico à chaga do coração.

Heitor sabia disso desde cedo, quando sofreu a primeira desilusão amorosa, aos 17 anos de idade. Um fim de namoro sem motivo. Acabado somente porque terminou mesmo. Era sonho de amor pra vida toda, ilusão que ele vivera sozinho. Esgotaram-se a história do jovem casal e a esperança do rapaz na vida. O encerramento se deu na manhã do dia em que ele teria treino de atletismo. Aquela era a semana da competição estadual na qual Heitor iria representar sua escola. A programação previa um treino bem leve, mas o atleta não conseguiu segurar. Treinou forte, treinou rude. Se jogou na pista não como em um treino de ir ‘apenas’ até o limite. A tristeza pelo amor findado o fez treinar como em dia de prova. Heitor bateu o recorde estadual no treino, se esgotou, ficou caído no chão com um sorriso bobo. A dor nos músculos posteriores das pernas o fazia esquecer aquele fora levado mais cedo. Só não o poupava dos gritos de “irresponsável” dados por seu treinador. Essa dor provocada serviu para aplacar a outra, aprendizado que o adolescente levou para a vida adulta.

Homem feito, Heitor praticava atividade física regularmente, e sempre que sua alma doía, buscava a dor no corpo para sustar momentaneamente as outras dores. Produzia dentro de seu próprio corpo as drogas necessárias ao alívio. No dia seguinte, o sofrimento voltava, e lá estava Heitor de novo, na rua, correndo mais do que devia, além do que podia, a se machucar, a sentir dor. Feliz, nem que por um lampejo.

A pandemia complicou sua vida como corredor. Correr de máscara não era a mesma coisa. Complicado demais, cansativo de forma nem um pouco prazerosa. Ele insistia porque precisava. Perdera um irmão para a covid-19, e não é fácil perder quem se ama. Além da morte, crise financeira, preocupação, mais mortes ao derredor, e medo, muito medo. Heitor corria sufocado, exaurido em busca de um prazer que não chegava.

Os problemas cresceram fora de controle, além do que o prazer causado pela dor pudesse mitigar. Heitor sofreu o fim de um amor verdadeiro, este sim, diferentemente daquele da adolescência, fora sonhado a dois. Mas nem no melhor dos sonhos há garantia de que perdure. No mesmo ano Heitor acompanhou também o sofrimento de um filho, história difícil de ser contada.

Era dor que não cabia dentro da respiração presa pela máscara, mas que também não justificava a violação às medidas sanitárias de proteção à saúde coletiva. Heitor então procurou um esporte em que pudesse se esgotar sem transgredir. Resolveu nadar no mar.

O que todo o sal contido no suor, nas lágrimas e na água salgada não puder curar, nada mais cura. Heitor espantava seus demônios a cada braçada. Se despedia da dor em cada batida de perna. Entrou no mar para esquecer da dor e o mar o abraçou. Nadou até doer, até se perder e se encontrar.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 03 de dezembro de 2021