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Universo paralelo

publicado: 22/12/2023 12h21, última modificação: 22/12/2023 12h21

por Felipe Gesteira*

No tempo em que as redes sociais digitais surgiam como novidade, era muito comum que os assuntos gerados por lá pautassem discussões entre as pessoas. O mundo real e o virtual andavam em paralelo, um alimentando o outro. Era possível dizer que um era reflexo do outro, pois se o virtual rendia assunto para o real, ao mesmo tempo precisava dele, ou dos recortes do mundo real, para hospedar seus conteúdos. Hoje assistimos, lentamente, ao aprisionamento das pessoas nas telas dos celulares.

Numa reunião de amigos, em vez da conversa descontraída, cada um está com seu telefone na mão, rindo sozinho, conversando com outra pessoa. Não dá para dizer que a comunicação foi prejudicada, já que operando um aplicativo de rede social o usuário interagem com diversas pessoas. Talvez converse superficialmente com mais gente do que se estivesse limitado às relações reais. No entanto, é indiscutível que enquanto mantém os olhos vidrados na tela, é como se a pessoa não estivesse ali no ambiente, com quem está perto. O usuário de telas se transporta para um universo alternativo que, mesmo sendo alimentado de cenas reais, se retroalimenta do próprio digital em remixes infinitos para manter cada vez mais as pessoas presas por lá.

O fenômeno não é de hoje. Desde que telefone celular passou a ter câmera é comum ir a um show e perceber centenas de pessoas que filmam o evento. Eles têm uma oportunidade rica de assistir ao artista ao vivo, perto do palco, mas abrem mão disso para assistir de suas telas um evento que não voltará. Pode ter outro show, do mesmo artista, mas nenhum instante é igual a outro, e daí a beleza de o tempo só andar para frente.

Para qualquer lugar onde se olhe tem alguém preso numa tela. Restaurantes, filas de banco, consultórios médicos, atravessando a rua. Até em encontros românticos, cada um perdido no seu telefone. O atraente mundo de falsa felicidade e corpos de mentira é bastante sedutor. Para agravar este adoecimento coletivo, pais estão passando seus costumes para as crianças. É bastante comum ver um genitor entregar o tablet para que a menina ou o menino fiquem quietos. Um aprisionamento viciante, com graves sequelas para a saúde dos pequenos.

E o que este desabafo sobre comportamento tem a ver com esportes? Tem um fato novo, explico.

Quem frequenta estádios já deve ter visto de perto o cenário narrado acima para os shows. É exatamente a mesma coisa: falta perto da área ou pênalti, logo uma legião saca seus telefones para perder a visão privilegiada do momento e registrar seu próprio recorte, como se isso fosse necessário para comprovar que esteve no local.

A prisão às telas por parte do torcedor não é novidade. O que vi pela primeira vez foi um profissional do futebol falar sobre o impacto dos telefones nas vidas dos jogadores e no ambiente coletivo de treinamentos. Em uma entrevista muito lúcida para o programa de estreia de Casagrande no YouTube, Renato Gaúcho, técnico do Grêmio, revelou um cenário de bastidores do mundo da bola. De acordo com o treinador, os jogadores não largam mais o celular. Almoçam com o aparelho ao lado, deslizando a linha do tempo entre uma garfada e outra. Ao fim da refeição, cada um corre pro seu quarto para ficar enfurnado no celular. Ele não chegou a se queixar de prejuízo tático ou menor rendimento do time por isso, mas lamentou profundamente que não haja mais interação entre os atletas, nem mesmo no ambiente interno. Na continuidade desses novíssimos modos de ser, o cenário de hoje pode apontar para um futebol ainda mais apático no futuro.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 22 de dezembro de 2023.