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Vaidade

publicado: 23/12/2022 00h00, última modificação: 23/12/2022 12h54

por Felipe Gesteira*

A linha bem no meio da testa foi a última marca de expressão no rosto do jovem atacante. Após rodar pelas categorias de base de diversos times menores, Flávio mantinha a esperança de jogar por um clube grande, mas a cada vez que era visto por um olheiro e o contrato não se concretizava, o fracasso baixava sua autoestima. O atleta passou então a investir na aparência, já que a bola não estava dando resultado, e partiu numa escalada de procedimentos estéticos para construir a imagem de jogador “padrão Europa”. 

Seu pai dizia que vaidade pra jogador de futebol era bater de trivela, ou deixar de fazer gol de trombada de bola à espera de uma bicicleta perfeita, numa pedalada que poderia não acontecer nunca. 

— Deixa de tua besteira, menino, que quem muito se enfeita é pavão. Gringo gosta é de ver a bola entrar.

Flávio rebatia dizendo que o pai não entendia do futebol moderno, mais envolto em marketing e aparência do que nos resultados, e argumentava que apenas estava jogando o jogo. 

Era grande a expectativa ao final da temporada para este último teste, sob o olhar do ajudante do primo do auxiliar técnico do Bahia, agora pertencente a um grupo internacional, o que poderia colocar Flávio diretamente na badalada liga inglesa de futebol. Foi diante dessa promessa que ele aceitou um contrato para jogar de graça o ano inteiro. 

Começou o ano pensando em resultados dentro de campo. Disseram-lhe que uma cirurgia para correção de desvio de septo nasal melhoraria sua condição cardiorrespiratória. O médico otorrinolaringologista que o atendeu sugeriu que aproveitasse a anestesia para fazer também um ajuste estético no nariz, e ele faria sem cobrar nada, só para ver o resultado nas futuras manchetes dos jornais da Europa, dizia enquanto acariciava o rosto inteiro, deixando até Flávio um pouco encabulado, mas sem rejeitar aquele afago. 

Ele gostou do resultado e logo foi pesquisar o que os maiores jogadores de futebol do mundo andavam fazendo para copiar. Em vez de buscar sobre tudo, desde o que comem, como se preparam fisicamente, Flávio deu prioridade à parte visual. Tratou de colocar lentes nos dentes, preencheu a boca, mexeu nas bochechas, fez sobrancelhas, alisou os cabelos, tudo para se adequar ao que ele achava perfeito. Tantos procedimentos tinham um custo além do financeiro, e para isso ele precisou perder alguns dias de treinamentos, mas como não recebia salário, ficou só pelas reclamações de pai e técnico do time, dois a quem ele pouco dava ouvidos. 

A última mudança seria aplicar botox no rosto inteiro. Pequenas aplicações, justificava, começando pela linha do meio da testa e seguindo pelas menores. Flávio queria ficar igual ao Neymar, que rindo ou chorando tem a mesma cara. 

O procedimento foi um tremendo sucesso, tanto que ninguém viu quando Flávio chorou ao perder a indicação para João, o jogador magrelo, com dentes faltantes e cabelo cortado em casa mesmo. 

— O que foi que viram nele, pai? — perguntava Flávio, desconsolado por dentro e, por fora, no máximo consternado.

— Chapéu, trivela, voleio e carretilha. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 23 de dezembro de 2022.