por Felipe Gesteira*
Minha última lembrança familiar remete a uma gaiola apertada. Entre balanços e solavancos, o nervosismo dos outros pássaros assustava um pouco. Eram tantos! Meus pais, apesar da tensão, tentavam me tranquilizar. E só de estar perto deles meu mundo parecia ser melhor. Quanta saudade!
Nasci ali, naquela gaiola, e pouco me lembro desse tempo. Só que o espaço entre os vizinhos não era assim, tão curto, como nesses dias da minha separação. Os donos das gaiolas nos levavam para o que eles chamavam de feira. Por isso tão apertado. Todas as nossas ‘casas’, todos os vizinhos, amigos do meu pai e da minha mãe que viviam em uma sala, naquele dia teriam que caber em um carro. Todos assim, empilhados como caixotes. O sonho coletivo era virar pássaro de competição. Para quem nasce ave de gaiola, competir no canto era almejar um esporte.
Assim como eu, meus pais também eram nascidos em gaiolas, e dos meus avós eu não sei nem história. A vida parecia ser boa, ou pelo menos ele me dizia que sim, e nunca os dois almejaram a liberdade. O amor bastava.
Então, apesar de meus primeiros dias prisioneiro, posso dizer que cresci em ambiente amoroso. Que bom, ao menos isso.
No dia da viagem de carro, lembro também que os donos pareciam estar nervosos, tanto quanto nós. No meio do caminho e daquele balançado todo ouvimos sirenes, gritaria, uma freada brusca e, pum! Nosso mundo girou. Mas girou mesmo, três ou quatro vezes, se bem me lembro.
Tinha pena de passarinho pra tudo quanto era lado. A porta da nossa gaiola estava entreaberta. A do carro também. Curioso como sempre, me espremi para passar e conferir o que havia acontecido. Minha mãe dizia que eu não fosse:
— Espera aqui, Amarelinho. Vai ficar tudo bem.
— Eu vou, mas volto — respondi.
Não deu tempo.
Assim que saí do carro vi o tamanho da confusão. Três homens vestidos de verde seguravam os dois donos das gaiolas, aqueles que nos cediam espaço de moradia e nos davam comida. Não entendia o que estava acontecendo. Tentei voltar e um deles já estava com a gaiola dos meus pais nas mãos, levando-os para o carro preto.
— Vá, filho, e lembre-se de ser bom, acima de todas as coisas. A honestidade virá junto com a bondade. E minha mãe, que sempre emendava mais recomendações, dizia: — Além de bom, é preciso ter cuidado. O mundo não é fácil para quem é canário. Seja prudente, paciente e perseverante!
Enquanto ouvia os conselhos de minha mãe, senti o zumbido da rede do homem de verde passando pertinho. Tão perto que me fez rodopiar; tão alto que me deixou meio zonzo. Se foram meus reflexos ou a mira ruim daquele homem, certo é que escapei por pouco. Meu pai, de novo, e pela última vez, gritou: — Vai!
E fui.
Do sonho perdido de ser um cantor competidor, agora meu esporte é voo livre.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 5 de agosto de 2022.