por Gi Ismael*
Às vezes lembro de uma específica noite chuvosa em novembro de 2017. Estávamos no Teatro de Arena, no Espaço Cultural, aguardando ansiosos por um show de Liniker e os Caramelows. Não fazia muito tempo que a banda havia se apresentado em João Pessoa; pouco mais de um ano, na verdade. Foi justamente nesse intervalo entre a apresentação calorosa no Atelier de Nai, em 2016, para aquela de 2017, que a popularidade do grupo andou a passos largos e isso impulsionou o retorno à capital paraibana.
Com o palco em tons quentes e luz baixa, a noite estava ao mesmo tempo doce e sexy, como a própria Liniker. Mas uma tempestade não nos deixava em paz. O aguaceiro foi tanto que, no meio de ‘Zero’, uma das principais músicas de trabalho do grupo até então, faltou energia por todo o bairro. Os geradores não deram conta. Apesar da cantora e toda a banda tentarem continuar a apresentação, as vozes e falta de amplificadores aguentam até um certo ponto. Show interrompido.
Às vezes lembro dessa específica noite porque estar num mesmo ambiente que Liniker é se sentir na presença de uma entidade. Inexplicavelmente mais do que a poderosa voz, sua presença preenche qualquer cômodo. E penso como a chuva carregou aquela experiência, como um barquinho de papel, pelo meio-fio em busca de um próximo destino.
Não sei se foi por chateação prolongada, mas percebi que passei alguns anos desde então sem ouvir as músicas de Liniker. Digo “ouvir” como em colocar no carro ou no trabalho e ouvir apenas ela, durante horas a fio. A primavera de 2021 chegou e, “psiu!”, me chamou a aba de ‘Novidades’ no Spotify. E eu fui.
‘Índigo Borboleta Anil’ é o primeiro disco solo de Liniker, álbum que veio quase dois anos após a cantora anunciar a separação da banda. Em onze faixas, todas compostas pela artista, temos soul (assim como ouvimos o encaixe perfeito do gênero com sua voz no EP ‘Cru’, 2015, e em quase tudo que veio depois), pagode, samba-rock, jazz; em outras palavras, música preta do começo ao fim.
Cada canção parece entregar um pedaço diferente de Liniker. Somos levados para dentro de sua casa, de sua rotina, de seu infinito, exatamente como os vídeos lançados para cada música se propõem a fazer. Isso torna possível dialogar sobre qualquer uma das canções de ‘Índigo…’. Enquanto músicas como ‘Clau’ e 'Lili' transbordam de amor, ‘Lalange’ me levou às lágrimas logo na primeira audição. Não bastasse a contrastante suavidade com que Liniker canta e denuncia a o crime que aconteceu com o garoto Miguel Otávio, que foi à morte após cair do 9º andar de um edifício por negligência de Sarí Corte Real, ex-patroa da mãe da criança, a entrada de Milton Nascimento na faixa é para arrematar a música.
O clima pesado, entretanto, não está presente em todo o álbum, apesar de ser completamente político: para a artista, humanizar seus amores, devaneios e vivências é resistir e existir enquanto uma mulher trans e negra.
Não sei se ficou claro até aqui, mas sinto a necessidade de ser mais direta: ‘Índigo Borboleta Anil’ é uma joia da música brasileira, um álbum impecável e marcante. De tanto ouvir sobre mares e rios no disco, lembro mais uma vez da bendita chuva de novembro de 2017. Tenho um presságio, espero: a água que de alguma forma a levou, trará Liniker para perto da gente em breve.