por Gi Ismael*
Olivia Colman é uma força da natureza. Uma atriz completa, que convence de qualquer papel que interpreta, seja o de uma madrasta cínica (‘Fleabag’) ou de uma tragicômica rainha (‘A Favorita’). Colman protagoniza um novo filme da Netflix e entra, mais uma vez, para as apostas das premiações cinematográficas.
Em ‘A Filha Perdida’, a professora universitária Leda (Olivia Colman) aproveita as férias escolares para visitar uma pequena ilha grega. Em paz numa praia quase deserta, ela aproveita seu tempo lendo livros e traduzindo poemas. Mas todo o seu sossego e tranquilidade se esvai quando uma grande e barulhenta família greco-americana chega no mesmo lugar. Entre festas de aniversário, adolescentes brincalhões e pessoas efusivas, Leda passa a observar uma jovem mãe (Nina, interpretada por Dakota Johnson) que está acompanhada de uma filhinha de 4 ou 5 anos de idade. Ela se vê espelhada na jovem e o sentimento só aumenta quando a garotinha se perde da mãe. Ao ajudar nas buscas, a professora se envolve de forma inusitada e desencadeia lembranças de sua vida enquanto mãe.
Diversas identificações e coincidências acontecem ao longo da trama e a similaridade dos nomes das personagens (“Leda”, “Elena”, “Nina”, “Mina”) é apenas a ponta do iceberg. O filme é uma adaptação do romance homônimo de Elena Ferrante, publicado em 2006. Ferrante é uma autora italiana cuja identidade real nunca foi confirmada, apesar de que a maior suspeita de que ela seja Anita Raja, tradutora e escritora italiana, seja um tanto óbvia. ‘A Filha Perdida’ marca a estreia da atriz Maggie Gyllenhaal enquanto diretora e roteirista.
Bem, não li o livro de Ferrante e nem sou mãe. Mas como nem sempre é necessária identificação direta para se ser tocada pela arte, este é um daqueles títulos que ainda não consigo tirar da cabeça. Ao começar pela protagonista. Leda é problemática, teimosa, uma pessoa sem filtros sociais, e, em muitos momentos, uma completa chata. No Sistema de alinhamento/tendência, uma perfeita "caótica neutra". Por estar entre uma anti-heroína e uma vilã (ou seja, um ser humano falho com atitudes moralmente questionáveis), espera-se uma justificativa que explique seus comportamentos -- e ela não vem. Tudo fica numa área cinza: Leda é assim por conta de seus problemas pessoais ou seus problemas pessoais existem pela sua forma de ser?
Enquanto muito se fala em maternidade real, acredito que ‘A Filha Perdida’ é um retrato de uma das muitas formas de maternidade, que expõe a irritação, o desgaste, a falta de privacidade. A jovem Leda (Jessie Buckley) expressa uma maternidade que se assimila a inúmeros e conhecidos casos de paternidade. O lado impaciente, rígido. O lado que não se sente e nem nunca se sentirá preparado. O lado que se sente numa prisão. Características tidas como “normais” e “culturais” para pais mas não para mães.
Gyllenhaal faz uma brilhante estreia ao conseguir transmitir um constante clima de mistério e thriller num filme onde nenhum crime acontece. Nada é nítido ou óbvio na narrativa e as sutilezas montam a tensão tijolo por tijolo. São as entrelinhas dos diálogos, os olhares suspeitos e que tentam, a todo momento, decifrar Leda.
A adaptação cinematográfica de ‘A Filha Perdida’, assim como o romance de Elena Ferrante, tem dividido opiniões. Entre a crítica especializada, a excelência é quase unânime. Entre o público geral, não fez tanto sucesso assim. É de fato uma história densa que traz uma complexa personagem com um detalhe decisivo: ela é mãe. Filme recomendadíssimo, nem que seja para chegar às suas próprias conclusões.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 12 de janeiro de 2022.