por Gi Ismael*
Não lembro quando foi a última vez que andei, a pé, por João Pessoa. E não digo ir ali na padaria e voltar. Digo realmente caminhar por dentro da cidade, bater perna prestando atenção em paisagens novas ou em detalhes nunca antes vistos de paisagens familiares. Grafites, pichações, ruínas, prédios abandonados. Essas cicatrizes urbanas que contam histórias.
Foi caminhando por Higienópolis, um dos bairros mais ricos de São Paulo e, por tabela, do Brasil, que o jornalista Chico Felitti despertou a curiosidade por uma mansão aparentemente abandonada em plena Rua Piauí. Perambulando pelo bairro, notou a casa e descobriu que sim, ela é habitada. Que por debaixo do teto cheio de buracos, existia uma figura excêntrica, uma idosa conhecida na região como “a bruxa”. Com o gravador e celular na mão, Chico precisava saber mais sobre aquela história. O resultado disso está sendo publicado semanalmente no podcast A Mulher da Casa Abandonada, da Folha de S.Paulo.
Com episódios lançados toda quarta-feira desde 8 de junho, o programa investiga a vida de Mari, a moradora daquela casa que mais parece o cenário do filme Terror em Amityville e como ela foi parar lá. Mas nem Jay Anson seria capaz de escrever novelas tão horrendas que cercam não a casa, mas a mulher que ali habita. Ela é vilã da história. Ela é procurada pelo FBI.
A história é contada com detalhes no podcast, mas para matar a curiosidade que posso despertar: Mari, que na verdade é Margarida Bonetti, é fugitiva dos Estados Unidos da América, pois foi condenada a prisão depois de ter mantido uma empregada brasileira em situação análoga a escravidão por 20 anos (de cerca de 1980 a 2000). A empregada, cuja identidade não é revelada no podcast a pedido da mesma, foi torturada, mantida em cárcere privado e impedida de buscar atendimento médico por duas décadas. O marido de Margarida, Renê Bonetti, um engenheiro espacial, chegou a ser condenado pela justiça estadunidense.
Toda a história cabulosa furou a bolha dos ouvintes usuais de podcast e virou uma obsessão para milhares de pessoas. A produção de Felitti, em um mesmo de um mês, pautou alguns dos principais veículos de comunicação do país. Rede Record, Band, Rede Globo e seus portais. Todo mundo quer trazer um pedaço dessa história. O agora antigo refúgio de Margarida virou local de turismo macabro em São Paulo.
A mansão do pai dela, o médico paulistano Geraldo Vicente de Azevedo, cujo pai, por sua vez, era Francisco de Paula Vicente de Azevedo, o Barão de Bocaina, é um pedaço tátil de uma página aberta da história de um crime. Pessoas passam na frente da casa, tiram fotos, pixam “escravocrata”, entram para tirar fotos e fazer vídeos para a Internet. Todo esse acontecimento que é narrado tornou proporções maiores do que o podcast A Mulher da Casa Abandonada e, como muitos casos na era digital, virou um espetáculo “instagramável”, “tuitável” e “youtubístico”.
Não sendo moradora da Terra da Garoa, fiz meu tour pelo Google Maps. A mansão agora é ponto classificado como “marco cultural” e aparece na plataforma listada junto com o Centro Cultural de São Paulo e o Itaú Cultural. Diferente das outras edificações, a mansão da herdeira do Barão de Bocaina, entretanto, é feita para receber pontuações negativas. A residência de número 1111 foi intitulada como “A Casa Abandonada de Margarida Bonetti e o Pacto da Branquitude”.
Hoje é dia de mais um episódio (com este, foram cinco lançados até então), mas devo avisar: Hereditário, Atividade Paranormal, Poltergeist - O Fenômeno, A Maldição da Residência Hill... nenhuma dessas ficções aflige como a história investigada e contada por Chico Felitti, uma história que persegue e oprime a população preta do Brasil há séculos. Uma história sobre a crueldade humana em sua forma mais límpida e podre. Margarida Bonetti não é “bruxa”, não é uma figura das fábulas. Ela é real. Ela e outras milhares de “sinhás” e “sinhôs” escondidos em suas mansões e fazendas de Norte a Sul do país.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 6 de julho de 2022.