por Gi Ismael*
Em 1831, Pedro 1º foge do Brasil rumo a Portugal para lutar contra seu próprio irmão, Miguel. Quais detalhes sobre este fato você se lembra de ter estudado nas aulas de história do colégio? Como era retratado o primeiro imperador do Brasil?
Não existem muitos registros – na verdade, quase nenhum – sobre a expedição do monarca para lutar na guerra civil. O que é incontestável é que a viagem significou uma série de mudanças políticas, como o começo da fase da Regência e do Segundo Império. É nesse período de meses a bordo onde acontece a trama de A Viagem de Pedro, filme dirigido por Laís Bodanzky, com roteiro dela, de Luiz Bolognesi e de Chico Mattoso, protagonizado por Cauã Reymond.
A Viagem de Pedro é um filme que nos faz ter uma visão bem menos quadrada e pragmática da época da colonização. Quando nos atemos aos relatos literalmente escritos em papel, não é difícil passar os olhos sem enxergar as entrelinhas. Fraco, burro, vergonhoso, mulherengo. Esses são adjetivos até comuns usados para descrever Dom Pedro 1º, aquele que proclamou a independência do Brasil ainda que por motivos suspeitos. Mostrando camadas densas do personagem, Reymond brilha no filme quando despe o homem de sua persona monárquica.
Só para deixar claro, ainda assim não foi dessa vez que criei simpatia ou empatia pelo herdeiro dos colonos. O imperador é retratado como alguém deplorável, inseguro, infantil. Algumas vezes no filme, quando conversa com o comandante do navio, o personagem, que sofre de impotência sexual provavelmente causada pela sífilis, faz questão de se colocar como melhor em tudo. O “imbroxável” que transa com mais mulheres, o que tem o pênis maior.
O longa é cheio dessas sutilezas que ajudam a dar mais profundidade e contexto à história que se passa em apenas 90 minutos de filme. Nos primeiros momentos de filme, por exemplo, se os ouvidos estiverem atentos, podemos perceber gritos de “covarde” e “fujão” e o som de garrafas se quebrando, fazendo alusão à Noite das Garrafadas.
As mulheres com quem Pedro se relacionou têm importância significativa na trama. Temos Leopoldina (Luise Heyer) e Amélia (Victoria Guerra) como duas pessoas diferentes, cada uma com suas ambições, frustrações e decepções. Leopoldina é, inclusive, quem narra, em alemão, boa parte do filme, trazendo ao final da trama um momento bárbaro rasgando com suas palavras o ego de um homem em declínio constante.
A literatura mostra com frequência um retrato apático dos escravizados, descritos quase como pessoas mudas que, irônica e terrivelmente, também tiveram suas vozes caladas nessa mesma literatura. Por mais que seja uma obra de ficção, o filme de Bodanzky traz uma abordagem plausível e robusta dos homens e mulheres que foram levados junto a Pedro ao outro lado do oceano. Em cenas magnéticas, alguns embarcados relembram suas terras e culturas, outros contam anedotas; uns são reservados, outros expansivos. São humanos e têm voz, vez e personalidade. E todos, todos, são conscientes das atrocidades que sofreram.
Bodanzky já havia mostrado sua potência dirigindo filmes atordoantes quando levou as câmeras para dentro do hospital psiquiátrico para dar vida ao O Bicho de 7 Cabeças. Na escuridão barulhenta e com balanço incessante, A Viagem de Pedro nos deixa como espectadores à deriva, como bisbilhoteiros por entre as treliças de um navio. Para complementar a noção de claustrofobia, a produção é filmada no aspecto 4:3. Isso mantém a tela preenchida de informações sem muita brecha para o vazio.
A Viagem de Pedro, que não é sobre a vinda do coração cinzento do monarca ao Brasil, está em cartaz em João Pessoa, no Cine Bangüê, durante o mês de setembro: sessões nos dias 18 e 21, às 18h30, e no dia 26, às 20h30.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 14 de setembro de 2022.