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#155 Poderia a matemática explicar o impossível?

publicado: 23/11/2022 00h00, última modificação: 23/11/2022 09h22
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Cruel e impactante, ‘Incêndios’ desbrava o passado de uma mãe (Lubna Azabal) - Foto: Foto: Divulgação

tags: incêndios , denis villeneuve , incendies

por Gi Ismael*

O filme começa com uma paisagem bucólica seca e silenciosa. Enquanto a câmera recua, uma janela emoldura a cena e entramos em um edifício aos pedaços onde dezenas de meninos estão cabisbaixos. São crianças do Oriente Médio esperando sua hora de terem as cabeças raspadas. Sujos e ensanguentados, aqueles olhos não dão sinal algum de infância. ‘You and Whose Army?’, de Radiohead, é a trilha sonora enquanto homens armados preparam o seu exército de garotos. Uma das crianças tem o calcanhar tatuado com três pontos. O menino quebra a quarta parede enquanto a câmera se aproxima lentamente de seu rosto.

Se você assistiu, já sabe. Há pouco mais de uma década, estreava nos cinemas o inesquecível Incêndios (2010), drama dirigido e escrito pelo canadense Denis Villeneuve. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2011, o longa, baseado na peça homônima do escritor libanês Wajdi Mouawad, além de ser um drama impactante, é uma das obras audiovisuais mais viscerais do cinema contemporâneo.

A sequência seguinte é o mote para todo o filme: os gêmeos Simon (Maxim Gaudette) e Jeanne Marwan (Mélissa Désormeaux-Poulin) reúnem-se com um amigo da família para a leitura do testamento de sua mãe, Nawal Marwan (Lubna Azabal). Além da divisão de bens e das instruções para seu enterro, ela deixa cartas para seus filhos com um último pedido: encontrem seu pai e seu irmão e entreguem-os essas outras cartas. A partir daí, o longa não dá descanso ao telespectador.

Incompreendida por seus filhos, Nawal sabia que a única forma de contar uma história de vida tão complexa quanto a sua, seria se os gêmeos percorressem o caminho que ela seguiu. E o que poderia ser uma exaustiva sucessão de reviravoltas forçadas (alô, Shyamalan!), é uma tragédia fictícia que transborda uma realidade dura e cruel. Mesmo sem deixar claro em qual país é contextualizada a trama, o Oriente Médio é um cenário histórico de conflitos religiosos, em Incêndios, milícias cristãs e muçulmanas se massacram. É um ciclo vicioso secular onde a violência é contagiosa e pessoas não são pessoas, são meros corpos. Provavelmente, nem a ciência poderia explicar o que faz a crueldade chegar ao ponto de ser algo corriqueiro.

Aliás, poderia a matemática explicar o impossível? Simbologias políticas e religiosas estão no DNA do filme através de crucifixos, terços, orações, e até santinhos colados em armas, mas é a matemática que desenrola o trama. O campo da ciência é a área de estudo de Jeanne, que aparece dando uma palestra sobre a Conjectura Collatz (ou o problema de Siracusa), uma teoria que, bem resumidamente, diz que qualquer número pode ser igual a um. Em um outro momento, já quando a gêmea está na busca pelo irmão desconhecido, um professor diz que não se encontrou com Nawar pois ele estava viajando bem na época quando, inclusive, “Euler foi bem sucedido ao dar a primeira resolução matemática para o problema das sete pontes de Konigsberg”. Na ocasião, Euler teria exclamado: “Senhores, i²+1=0. Portanto, Deus Existe!”.

Nesta tragédia familiar onde cartas foram o ponto de partida da triste jornada dos Marwan e foram também o fechamento de um capítulo traumático, Incêndios chega mais uma vez ao ponto de que todos os caminhos levam a uma chegada.

O drama não tem o grandioso apelo estético da filmografia mais recente de Villeneuve (A Chegada, Blade Runner 2049 e Duna) e ainda assim é seu título mais impactante graças a simples matemática do menos é mais: uma adaptação forte, um elenco principal e secundário impecável e uma direção extremamente focada no storytelling. No final das contas, a memória da “Mulher que Canta” perdura, seja ela uma prisioneira política ou a protagonista de um filme de ficção.

*Coluna publicada em 23 de novembro de 2022.