Notícias

Opinião

#176 É treta!

publicado: 03/05/2023 13h00, última modificação: 03/05/2023 13h00
Ali-Wong-and-Steven-Yeun-lean-out-their-car-windows-in-BEEF.png

Ali Wong (E) e Steven Yeun (D) no elenco formado majoritariamente por asiáticos - Foto: Netflix/Divulgação

por Gi Ismael*

Tem dias que tudo parece conspirar para dar errado. Você não ouve o despertador tocando, sai de casa às pressas, esquece algo importante em cima da cama, pega trânsito, tentar escapar do engarrafamento e pega o caminho errado. Desculpa o gatilho. Se parece específico demais é porque isso já me aconteceu… algumas vezes. E são nesses dias, semanas ou meses péssimos que a gente fica totalmente suscetível a elas: as tretas. Se você acha que essa bola de neve de escolhas ruins foi estressante, espere até assistir Treta, a nova série da Netflix.

Criada pelo sul coreano Lee Sung Jin e produzida pelo estúdio A24, Treta (título original Beef) estreou a primeira temporada completa no último dia 6. A série já chama atenção por ser uma produção americana e ter um elenco e criação compostos majoritariamente por pessoas asiáticas (coreanos, japoneses, vietnamitas, chineses…), com uma trama que com certeza vai ser um ponto fora da curva para quem é habituado a um formato mais comercial de programa televisivo. Toda a história tem como ponto de partida uma briga de trânsito entre duas pessoas – a empresária Amy e o construtor Danny – que não assumem a culpa e nem dão o braço a torcer. Após um incidente bobo, sem feridos ou danos materiais, eles entram numa espiral de vingança digna do filme Relatos Selvagens (2014). A história do curta de 1950 do Pateta no trânsito se repete: o Sr. Walker, um pacato cidadão, vira o Sr. Wheeler, um motorista.

Assistir a série pode parecer muito como assistir um filme de terror. É frustrante ver na tela uma sucessão clara de erros, com cenários que só escalonam e não parecem melhorar, bem no modelo Joias Brutas, com Adam Sandler. Mas, acredite, Treta apresenta tanta profundidade em cada personagem que conseguimos, de certa forma, compreender até as escolhas mais idiotas dos personagens. Amy (Ali Wong) é uma mulher que se importa muito com o que os outros pensam. Sua vida e casa são monocromáticas-quase-sépia. Ela não se abre para o marido, para a terapeuta, para ninguém. Pelo contrário, se retrai. Resguarda pensamentos, gestos, desejos. Casada com um artista japonês (Joseph Lee), tem uma filha fofíssima e uma sogra apática (Patti Yasutake).

Danny Cho (Steven Yeun), por sua vez, vem de uma família pobre e sente dificuldades para sair da apertada situação financeira. Tenta seguir na luta diária enquanto construtor, sustentando seu irmão mais novo Paul (Young Mazino), com quem tem uma relação difícil, honestamente tentando se agarrar em algo para viver uma vida tranquila. Ele vive angustiado e, sem enxergar uma saída, deseja acabar com a própria vida. Até que a famigerada briga de trânsito aparece como um novo objetivo, ainda que destrutivo.

Por mais que nossa tendência seja que os opostos venham a se atrair de um jeito romântico, como alguém pé no saco que conquista a garota que o odeia (tipo Han-Solo e Leia), a relação deles é mais complexa quando traz vidas tão diferentes e que ainda assim têm muito em comum. Os dois vivem a experiência de ser uma minoria social nos EUA, de serem filhos de imigrantes, de estarem beirando a casa dos 40 anos. Na verdade, os dois precisavam se agarrar em algo que lhes movesse. Ali Wong e Steven Yeun são brilhantes na série e a química deles (de novo, de uma forma nada romântica) é maravilhosa. Os dois trabalharam juntos por três anos como dubladores em Tuca & Bertie, animação criada por Lisa Hanawalt, produtora e desenhista de BoJack Horseman, e com certeza isso foi um preparatório para o que vemos em tela com Treta.

Com cinematografia requintada, a série é parcialmente ambientada no mesquinho mundo das artes plásticas e isso é um fator determinante na estética da produção. No início de cada episódio, temos quadros que dialogam com o título dos capítulos (um detalhe é que as pinturas foram feitas por David Choe, que interpreta o primo Isaac). A casa de Amy e George (cujo ator é um talentoso pintor na vida real) é sofisticada, as roupas são elegantes, mas tudo parece insípido.

(Um salve para a trilha sonora, que parecia ter saído direto do meu Spotify com toda a aleatoriedade do meu gosto musical, com Justice, Incubus e Björk só para dar alguns exemplos.)

Durante quase toda a série, ainda que carregada de humor e sarcasmo, não é difícil ser tomada por sentimentos ruins de desconforto. É uma ficção factível demais e ela seria ainda mais difícil de deglutir se não o tom não mudasse discretamente nos dois últimos episódios. São eles que trazem um peso filosófico maravilhoso (que merece um artigo por si só) sobre tristeza, raiva e escolhas, e como nem sempre a gente quer ou pode fazer uma limonada com os limões que a vida dá – e precisa arcar com as consequências. Treta fecha a temporada com mestria e é justamente por isso que torço para que não haja uma segunda. Ou que, se isso venha a acontecer, que seja uma história completamente diferente – para o bem da nossa sanidade mental!

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 3 de maio de 2023.