Entre os diversos motes para a ficção calcada no terror está o argumento do gêmeo malvado. Romances, novelas, filmes e séries, eles ou elas já estiveram presentes em todas as mídias. Uma das histórias mais clássicas dos univitelinos veio em 1988, com roteiro e direção de David Cronenberg: Gêmeos - Mórbida Semelhança, estrelado por Jeremy Irons e Geneviève Bujold. Eis que, 35 anos depois, a problemática relação dos dois é adaptada para o streaming em formato de série em uma ode repleta de tensão e suspense.
Ambas as produções audiovisuais são baseadas no livro Twins, de Bari Wood e Jack Geasland e, enquanto o filme traz dois ginecologistas chamados Beverly e Eliott, a adaptação muda o gênero dos protagonistas e apresenta as irmãs Beverly e Elliott Mantle, uma inteligente, porém óbvia escolha, já que na língua inglesa ambos nomes podem ser usados tanto para o sexo feminino quanto para o sexo masculino. Assim como Jeremy Irons, em 1988, Rachel Weisz é a atriz que vive as duas médicas, que sonham em abrir um centro de obstetrícia e ginecologia. Beverly e Elliott são dependentes em tudo o que fazem, até para encarar certas situações sociais. Enquanto Beverly é mais recatada e tímida, Eliott vem como a força oposta e dominante. Por vezes, elas trocam de lugar e é quando uma atriz chamada Genevieve entra na jogada que a relação das irmãs começa a se estremecer.
As roteiristas e produtoras Miriam Battye e Alice Birch, que trabalham juntas na favorita da crítica Succession, são os principais nomes por trás da versão para streaming. Lançada como minissérie espalhada ao longo de seis episódios, Gêmeas: Mórbida Semelhança é uma adaptação que caminha com as próprias pernas enquanto honra o mais grotesco lado de Cronenberg (além de trazer citações icônicas do filme e muito, muito uso da cor vermelha nos figurinos). A produção tem um passo ideal, e apesar de ser difícil de deglutir quando traz a obstetrícia nua e crua, possui elementos extras que complementam a narrativa paulatinamente.
Uma das melhores escolhas de Gêmeas foi, de fato, levar a narrativa para uma ótica feminina. Porque o mundo dos partos, da gravidez, da concepção, é outro quando encarada por quem gera vidas. Com isso, a série discute a “industrialização” do parto e a forma como as pacientes são encaradas e tratadas nos hospitais. A falta de humanização e cuidado estão lá, no debate, aparecendo nas entrelinhas (às vezes mais explicitamente, como o uso do corpo feminino negro como cobaia pelo “Pai da Obstetrícia”). Porém, claro, esta ainda é uma série carregada de thriller. Então temos Elliott como a gêmea problemática. Impulsiva, rancorosa, ciumenta, possessiva, com problema de vício.
Bastante sarcástica, a série pode confundir em qual linguagem deseja usar com o público, parecendo por vezes uma bagunça narrativa (mas que logo consegue as rédeas de volta). Outro ponto negativo é que a fotografia é muito escura em diversas cenas, quase impossível de visualizar o que está na tela. Pessoalmente, isso me dá nos nervos.
Rachel Weisz é o melhor que Gêmeas traz ao público, sendo uma das melhores de suas atuações. Não é fácil convencer o público de um personagem e, ao mesmo tempo, Rachel nos convence de duas irmãs completamente diferentes. É ela que me faz recomendar ainda mais a série, porém com ressalvas. Você tendo assistido ou não a obra de Cronenberg, essa é uma produção para quem gosta de thrillers e filmes de terror, e que, ao mesmo tempo, não se importa com o gore da vida real que acontece dentro das salas de cirurgia. É uma série que me surpreendeu, mas que, pela história que pesa a mão no horror, não acho que consiga assistir de novo, mesmo classificando com uma pontuação acima da média na minha tabelinha mental.
*Coluna publicada originalmente publicada na edição impressa de 17 de maio de 2023.