Infelizmente, é incomparável o número de filmes que assisti ao número de peças e espetáculos teatrais que já prestigiei. Claro: o acesso a obras audiovisuais é muito maior (especialmente hoje em dia com catálogos infinitos de streamings e afins) do que a quantidade de aparelhos culturais e fomento às artes cênicas. Mas aqui, especificamente falando de João Pessoa e da Paraíba, sinto (e ouço de colegas artistas) o teatro é bastante desvalorizado, ainda que vieram dos palcos daqui nomes como Fernando Teixeira, o Piollin Grupo de Teatro com Luiz Carlos Vasconcelos, Everaldo Pontes e Buda Lira, Paulo Pontes, Ednaldo do Egypto, Zezita Matos, Marcélia Cartaxo e muitos outros. Ao longo desses meus 30 e poucos anos, lembro de ondas muito curtas quando escutava que alguma peça estava em cartaz na cidade e na maior parte do tempo era como se poucos espetáculos daqui e de outras cidades não conseguiam performar na capital paraibana.
Como depois da tempestade parece vir o sol, final de semana passado pude assistir ao premiado espetáculo ‘Tom na Fazenda’ no Teatro Santa Roza e senti uma ponta de esperança de novos tempos ao ver o belíssimo palco ocupado e as poltronas lotadas.
‘Tom na Fazenda’ é traduzido e protagonizado pelo ator pernambucano Armando Babaioff, é uma adaptação do livro ‘Tom à la ferme’ (2011) do canadense Michel Marc Bouchard. A peça, que estreou em 2017, tem direção de Rodrigo Portella e elenco formado ainda por Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues e Camila Nhary. Na trama, Tom é um publicitário que perde seu namorado num acidente de moto. Ele viaja até a fazenda da família de seu companheiro para o funeral mas, ao chegar lá, descobre que quase ninguém sabia da homossexualidade do jovem morto e muito menos que ele e Tom formavam um casal. “Quase” ninguém: o violento e abusivo cunhado de Tom sabia e fez de tudo para que sua mãe não descobrisse o segredo de seu falecido filho mais novo.
A peça não possui cenários e contém poucos objetos em cena. Foi uma experiência única observar, da plateia, o Teatro Santa Roza em toda profundidade e amplitude que muitas vezes é limitada pelas cortinas. ‘Tom na Fazenda’ tem muito disso: o aproveitamento do todo, dos corpos dos atores e do espaço cênico. É um espetáculo de completa entrega física e emocional dos seus atores, em especial Babaioff e Rodrigues, que estão em trabalho constante e ondas assertivas de maior e menor intensidade.
O trabalho de luz pode, claro, fazer toda diferença numa experiência como essa, mas a peça tem atuações tão energizantes que se sustentaria se a iluminação fosse apenas composta pelo clarão do primeiro ato. Mas a direção e a iluminação imprevisível elevam ‘Tom na Fazenda’ a um outro patamar, exacerbando cada minuto da sufocante dramaturgia.
A peça tem seus toques de comédia que são realmente um respiro durante as duas horas de espetáculo, pois é uma abordagem crua e pesada para temáticas como homofobia, sexualidade e patriarcado. Acredito que esse tenha sido o primeiro espetáculo de thriller psicológico que assisti. O comparativo a seguir é apenas para compreensão de quem, como eu, não tinha consumido o gênero no teatro: a peça é como o encontro de 'Estou Pensando em Acabar Com Tudo' (2020) de Charlie Kaufman, com 'Ataque dos Cães' (2021) de Jane Campion. É um roteiro repleto de tensões onde delírio e realidade se confundem, onde pensamento e verbalização valseiam por uma linha fina de uma narrativa que vai se construindo como em 'Sinédoque, Nova York'.
‘Tom na Fazenda’ começou aqui em João Pessoa a turnê pelo Nordeste com dois dias de teatro lotado. Agora, a peça passará por Salvador e São Luiz e, se tiver a chance, não deixe de assistir.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 30 de agosto de 2023.