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#195 Quando a cozinha é prato cheio para cinematografia e tensões

publicado: 11/10/2023 12h44, última modificação: 11/10/2023 12h44
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Lionel Boyce (E) e Jeremy Allen White (D): gastronomia como arte não ortodoxa - Fotos: Star/Divulgação

por Gi Ismael*

Comer é puro e simples, um ato de sobrevivência. Em nossa sociedade capitalista, torna-se também um ato político, um ato social, um direito. Cozinhar, por sua vez, é cotidiano e, para muitos, é afeto. É demonstração de amor, é herança, é saudade e aproximação. Comida é tema de documentários, filmes, livros e séries que vão muito além dos livros de receitas, cada um trazendo sua forma para abordar algo que é inerente a toda a sobrevivência do universo. Quando a gastronomia encontra carinho, luto, caos e as ruas de Chicago, surge The Bear (ou “O Urso”), uma deliciosa e frenética série tal qual aquele magnífico “podrão” perto de casa que você adora.

The Bear foi criada por Christopher Storer, que roteirizou e dirigiu a maioria dos episódios. A série gira em torno da Mr. Beef, uma lanchonete italiana que existe na vida real em Chicago desde 1979. Mas pouco da produção tem a ver com o histórico do estabelecimento real: em The Bear, quem comanda a cozinha é Carmy (Jeremy Allen White), um chef já considerado o melhor do mundo, que trabalhou nas melhores cozinhas e teve formação invejável. Após a morte de seu irmão Mickey (Jon Bernthal), ele volta para Chicago para assumir o restaurante familiar, o Mr. Beef. Diferente dos locais por onde passou, o estabelecimento está longe de ter qualquer finesse de um local com estrelas Michelin e enfrenta desafios diários com uma equipe desorganizada, sem zelo e mais caótica que o normal dos fogões.

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Jeremy Allen White é brilhante do começo ao fim

Não sei se sou eu que tenho consumido muitos conteúdos assim, mas me parece que The Bear entra na onda crescente de produções audiovisuais de tom frenético, dessas que parecem um ataque de ansiedade assistido. Os episódios curtos e acelerados são repletos de poluição sonora e visual que aumentam a tensão a cada instante. Mas o que pode ser tão tenso num restaurante? Pode ser uma panela no fogo prestes a queimar. Ou alguns traficantes batendo boca na frente da loja, talvez uma inspeção que detectou falhas graves ou uma falha no sistema de delivery. The Bear pode parecer ter a receita para afastar o público, mas é uma produção feita de forma tão bonita e tão bem pensada que cada segundo magnetiza.

E não se engane: há paz em The Bear – e ela mora na comida. Assim como Hannibal, a gastronomia é vista como arte mesmo que venha num contexto, digamos, não muito ortodoxo. E é na maioria das vezes o esmero e paixão com que personagens como Carmy, Sydney (Ayo Edebiri), Marcus (Lionel Boyce) e Tina (Liza Colón-Zayas) têm no feitio dos pratos, mesmo em meio à gritaria infinita na cozinha, que proporciona preciosos segundos de respiro na série. A cozinha, ao mesmo tempo em que é a pauta da terapia, é também a própria sessão terapêutica num ciclo vicioso de adrenalina e prazer.

Jeremy Allen White é brilhante do começo ao fim e por mais que o personagem de Carmy lembre o modo “garoto problemático” de Lip Gallagher, personagem que fez na excelente – e também louca – série Shameless por anos, Allen White entrega uma atuação muito convincente, trazendo nuances e crescentes que de um homem rodeado de problemas, porém centrado, generoso e maduro. A série se faz de todo o seu núcleo, claro, mas Jeremy Allen é, de fato, o chef de The Bear.

Em suas duas temporadas lançadas até agora, a série já é uma das melhores produções televisivas contemporâneas e não é só minha opinião: se isso for algo que te pareça relevante, no Rotten Tomatoes ela tem classificação 99% positiva da crítica especializada e mais de 90% positiva pela audiência. A primeira temporada traz o amor como força propulsora, a vontade de fazer dar certo e insistir em meio às adversidades. Na parte dois, até os desacreditados se juntam numa equipe onde a esperança velada está sempre lá, pairando, mesmo que cada um deles seja miserável em seus cotidianos. Grandes destaques da série são: o episódio 7 da primeira temporada, feito inteiramente em plano-sequência, e o episódio 6 da segunda temporada. São aulas de narrativa e direção daquelas que nos deixam primeiro tensos pelo que está acontecendo em tela, e depois de olhos atentos em cada detalhe cinematográfico.

Uma terceira temporada ainda não foi anunciada, mas é difícil que ela não aconteça após a greve de Hollywood. Um chef, afinal, jamais negaria um bom prato no auge de sua carreira.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 11 de outubro de 2023.