Há 10 dias sou tomada por uma dor que nunca antes havia sentido. Minha gatinha Mexerica fugiu e não voltou mais. Era 2015 quando resgatei Mexerica do chão do Centro Administrativo Municipal. Estava desnutrida e já sem um dos olhos. No instante em que a olhei, sabia que precisava cuidar dela sem nem imaginar o quanto ela cuidaria de mim. Levei aquela gatinha laranja para casa (naquela época, ainda morava com meus pais) e quem não gostava de gato, logo se apaixonou por ela e virou a casaca. Saí da casa dos meus pais, fui morar com meu antigo companheiro, me separei, morei com a minha irmã, morei só, me casei novamente e ela sempre esteve ao meu lado. Sempre Mexerica, a primogênita do que viria a se tornar nossa grande família de pelo, formada por três cães e três gatos. É rainha soberana, a que manda na casa e, ainda assim, a mais carinhosa do bando, daquelas gatas que se jogam e se entregam e se agarram com a gente.
Dói.
Desde seu sumiço venho, junto com minha família, procurando-a incansavelmente por todos os cantos da região onde moro. Espalhamos cartazes, contratamos carro de som, entramos de rua em rua, anunciamos na TV, espreitamos de beco em beco atrás dela e conversamos com gatos daqui da vizinhança. Talvez diante de todos esses esforços, muita gente pense que é besteira. “Gato é assim mesmo. Ele sempre volta”. E tive esse medo de ser incompreendida porque, para mim, a proporção e o peso desse desaparecimento de Mexerica são de uma angústia absurda. E se estivéssemos sós nessa missão? Como enfrentar uma barra dessas sem o coletivo?
Aconteceu o oposto: o sumiço dela tomou uma proporção que eu não esperava e logo se formou uma rede de apoio, empatia e solidariedade inacreditável. Conhecidos e desconhecidos compartilhando sua foto online, me enviando mensagens, pessoas ativas nas rezas, mandingas e tarôs, amigos circulando o bairro por conta própria, outros atendendo o chamado para um mutirão (jamais vou conseguir agradecer o tanto que eles merecem). Recebo mensagens de pessoas que dizem andar sempre atentas. Os homens e mulheres que catam recicláveis aqui na área, as crianças do bairro, os proprietários dos mercadinhos e as donas de casa: todos já a conhecem pelo seu nome e ficam atentos para qualquer movimentação. Enquanto foi dificílimo publicar a notícia de seu desaparecimento, tem sido reconfortante e necessário sentir de perto tamanha empatia, amor e empenho.
A verdade é que passa dia, passa noite, a angústia vive aqui ao lado de culpas, receios, preocupações e saudades. Morte sempre foi um tema complexo para mim visto que, como muitas pessoas, eu vim de um lar onde o assunto era tabu, e foi apenas de poucos anos para cá que passei a encarar de forma mais pragmática o destino inevitável a todos nós. Meu companheiro definiu bem o que estamos passando: lidar com o desaparecimento é estar num limbo constante. Não podemos vivenciar o luto porque não temos uma certeza, e nem podemos viver integralmente a esperança do reencontro porque, novamente, não temos uma certeza. Não há pragmatismo para o sumiço e isso nos corrói.
Eu gostaria de ter um fechamento expressivo para este texto, mas a verdade é que ele vem como puro desabafo íntimo, ainda que público. Se na semana passada não consegui escrever a coluna porque estava completamente tomada pelo desespero, hoje eu me sinto um pouco melhor em conseguir produzir algo. Essa é mais uma forma de projetar seu retorno para o universo e clamar em plenas páginas de um jornal: “Me mande notícias”.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 01 de novembro de 2023.