A literatura de ficção traz, por vezes, um certo artifício narrativo para justificar a força ou motivações de uma personagem feminina a partir de suas experiências de abuso. Na língua inglesa, o recurso é chamado de rape-revenge (ou “estupro e vingança”). De tão usado, tornou-se um gênero de filmes de drama, terror e thriller, onde uma personagem feminina é estuprada e, após esse ato, busca vingança. É um terreno delicado: por um lado, temos inúmeros filmes e séries, em sua maioria escritos e dirigidos por homens, que pesam a mão ao mostrarem as cenas dos abusos contra a mulher; por outro, temos personagens femininas cuja única característica é ter sido vítima de um abuso. Quando um roteiro inclui o horrendo crime de estupro, que pode ser cometido contra uma pessoa independente de seu sexo ou gênero, usando-o repetidas vezes para justificar a história de mulheres fortes, muitas discussões cercam a necessidade e até os efeitos de tais tramas e histórias. O fato, claro, é que nós somos vítimas em massa desse tipo de abuso. E por mais que eu não consiga jogar todos os títulos ficcionais numa mesma balança (temos Thelma & Louise, Handmaid’s Tale, Bela Vingança e Millenium, só para citar alguns que poderíamos enquadrar nesse “gênero”), a série de quadrinhos Carniça e a Blindagem Mística, de Shiko, é um exemplo de como é possível andar por esse campo.
Carniça e a Blindagem Mística aborda o cangaço na década de 1920 no Nordeste e traz como protagonista um quarteto formado por mulheres que fizeram parte (à força) dos bandos. Apesar de boa parte de a história ser ficcional, a maioria dos atos de violência cometidos contra essas mulheres aparece em textos publicados em jornais e livros, distribuídos em colagem no começo de cada edição. Não que não haja sangue nas páginas da HQ – na verdade, os livros só faltam incensar a ferro – mas eis uma diferença substancial na obra: não houve necessidade de se ilustrar (literalmente) o sadismo que levou ao fim a vida de diversas mulheres. Várias delas são citadas e ilustradas em vida nas páginas, virando personagens visíveis, sendo apresentadas com nome, sobrenome ou apelido.
Além de visualmente deslumbrante e impactante, Carniça... é rica em referências culturais e históricas paraibanas e nordestinas, trazendo símbolos como a carranca e ex-votos no ápice de seu roteiro. Shiko, nascido em Patos, Sertão paraibano, passou a vida ouvindo histórias do século passado e isso serviu de inspiração para a série. Os álbuns trazem misticismo, mas sua intenção não é ser um conto de fadas e a ultraviolência é característica das principais, e de forma alguma isso quer dizer que ela seja simplória. A história é construída e costurada a partir de uma extensa pesquisa, boa parte baseada em depoimentos verídicos contados em filmes e livros sobre o cangaço. Enquanto o primeiro volume, cujo subtítulo É bonito o meu punhal, prepara o terreno da narrativa e detalha a estética das roupas e armas dos bandoleiros, o segundo (A tutela do oculto) é focado na história da protagonista Carniça e o terceiro (A morte anda no mundo) no acerto de contas.
Se a misoginia é latente hoje, ler os quadrinhos foi uma constante lembrança de que as coisas eram ainda piores quando tudo aquilo de fato aconteceu, seja pelas mãos dos homens do cangaço, das “autoridades” ou dos “homens de bem”, resumindo, do famigerado patriarcado. Pela veracidade desses fatos, não fui tomada ao todo pelo regozijo da vingança e nem acho que essa seja inteiramente a intenção da obra. Acredito nas palavras do próprio autor quando o entrevistei aqui para o Jornal A União há alguns meses: Carniça e a Blindagem Mística existe para mudar o foco, narrar ao mesmo tempo em que confabula uma vez que o autor segue “inventando, reinventando, costurando, construindo, recontando a palavra com imagem”.
Em breve, a história se encerra com o lançamento do volume quatro e os planos de adaptar para o cinema estão a todo vapor. A minha torcida sincera é que os títulos sigam com a mesma criatividade, pesquisa e cuidado das primeiras edições. E sangue derramado, membros decepados e algumas vísceras aparentes também, por que não?
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 08 de novembro de 2023.