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#35 ‘Bojack Horseman’: o fim, enfim

publicado: 12/02/2020 09h12, última modificação: 14/10/2021 11h39
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Após 77 capítulos, série de animação chega ao fim como sucesso de público e critica - Foto: - Divulgação

tags: Bojack Horseman , Netflix , Bojack , gi ismael , gi com tônica

por Gi Ismael*


(Este texto contém spoilers do final da série ‘Bojack Horseman’)

Escrevi há um tempo sobre minha animação preferida e uma das melhores séries ficcionais que tive a felicidade de acompanhar. Precisei e ainda preciso ser hiperbólica: para mim, Bojack Horseman é tudo isso. Citei alguns pontos que fizeram eu me apaixonar pela série, desde o roteiro até as piadas, reflexões, bobagens e construção dos personagens. Tudo isso esteve presente no series finale.

Logo de início, num jogo de roteiro com rápidos cortes que alternam cenas e manchetes de jornais, temos uma hilária e certeira contextualização, onde Horseman está vivo e aparece diante de vários julgamentos. No tribunal, nos noticiários e até no hospital. Acompanhei de perto, como milhares, a jornada do protagonista e senti gradações de raiva e de empatia, mas, por pior que seja este sentimento, nesse momento só consegui sentir pena. Já sabia de cor e salteado, por exemplo, tudo que acontece na abertura do episódio já que, durante 77 capítulos, o momento da queda na piscina persistiu lá. No episódio que encerrou a trama não foi diferente, mas o peso que a cena carregou diante do contexto foi único e entendi que, por pouco, aquele afogamento de Bojack não foi literal.

Além das complexidades do “ser” e das relações humanas, a série transitou continuamente, de forma crítica, pelos moldes doentios da indústria norte-americana do entretenimento. Apesar de ter aparecido também no último episódio, este não foi o foco. O último episódio, como tinha de ser, foi sobre fechamentos (ou aberturas) de ciclos. Horseman está na prisão e lá, sem ser a pessoa no comando, ele consegue seguir em frente, manter-se sóbrio. Dirigir uma adaptação da peça Hedda Gabler no presídio é como dar continuidade a bem sucedida, porém curta, carreira como professor universitário. “Olha, nada é fácil. Mas eu não estaria falando com vocês se pensasse que é tarde demais pra gente”, diz o protagonista para seus colegas de uniforme laranja num discurso motivador.

Pode ser que tudo que você leu seja mais um caso dessa sedenta vontade de ler as entrelinhas. Mas a partir o aparecimento de Mr. Peanutbutter em cena, os minutos seguintes são de doses cavalares de frases de efeito, redenção e amadurecimento de cada um dos cinco personagens centrais. Todos, de alguma forma, deram as costas para Bojack por terem alcançado um esgotamento emocional, um limite de paciência -- totalmente compreensíveis, por sinal. Mas, diante da morte (ou quase morte) de uma pessoa realmente querida, sentimentos dos mais verdadeiros vêm à tona. Todd, Princess Carolyn, Diane e Mr. Peanutbutter estiveram por perto quando qualquer um deles passava perto do fundo do poço.

Enquanto Mr. Peanutbutter consegue entender, graças a boas doses de terapia e reflexão, que o problema de todos seus relacionamentos amorosos anteriores era sua constante necessidade de ser protagonista, ele faz inúmeros pequenos gestos para ajudar seu grande amigo. Busca-o na prisão, arranja um terno (dois, na verdade), o leva para sua lanchonete preferida -- e eventualmente o deixa no vácuo na festa de uma forma bem Mr. Peanutbutter. Mas é assim que a amizade deles funciona: com os comentários sarcásticos do cavalo e com o possível déficit de atenção do cachorro.

O querido Todd é o próximo a reencontrar Bojack e o convocar para alguma possível aventura non-sense. Foi lindo ver que, na verdade, Todd é quem resgatava o protagonista do solitário desconforto de uma festa de casamento. Tirava-o de lá para ver fogos de artifício na beira da praia. Para jogar conversa fora e teorizar sobre a subjetividade da arte, sobre nossos objetivos de vida, de uma forma extremamente boba. E perfeita. “Pois é, foi bom enquanto durou, né?”, “Sim, foi bom enquanto durou”, dialogam enquanto ondas levam embora as pegadas recém-marcadas na areia.

Bojack, então, encontra Princess Carolyn, mas não sem antes provar -- e gostar -- uma fatia de melão, fruta que abominava durante toda a série em mais uma das piadas recorrentes do programa. As coisas mudaram, de fato. TA dança compartilhada entre os ex-namorados Bojack e Princess Carolyn é um desabafo hipotético e sincero, com desejo de coisas boas e promissoras e a certeza de que estarão lá um para o outro. alvez não da mesma forma que antes, mas ainda assim, estarão lá. 

Quase um terço do episódio é dedicado ao diálogo final entre o protagonista e Diane. Sentados no telhado, como nos velhos tempos, eles estão cercados por uma tensão diferente. Pelo remorso, pela culpa, pela tristeza que acompanha algumas mudanças da vida. É impressionante como eles são diferentes quando estão juntos, o fluxo de conversa é único. Eles conseguiram ser duramente sinceros e compreensíveis quando necessário e é justamente por isso que as consequências são maiores na relação dos dois. “Algumas pessoas nos ajudam a nos tornar quem somos, e podemos ser gratos a elas mesmo que elas não fiquem na nossa vida pra sempre”. Os olhares no silêncio pós-diálogo dizem muito. Eles refletem, sentem, lembram. A sutil inclinada deles para perto um do outro me fez sentir que tudo ficaria bem.

Terminei a série e estava quase arfando diante da avalanche de sensações. Assimilei tudo que tinha visto, inevitavelmente, à cultura do “cancelamento”, onde num ato de pretensa superioridade internautas “cancelam” alguém que errou publicamente, como se pessoas fossem compras feitas no cartão de crédito. Bojack percorreu caminhos errados e perturbadores, uns por indução, outros por infortúnio e mais um bocado por falha de caráter, mesmo. As consequências não parecem injustas, mas ao mesmo tempo torcemos pela redenção porque sabemos que ele está tentando e persiste em melhorar, mesmo que tardiamente. A cultura do cancelamento é superficial demais para a complexidade que é existir.

Bojack Horseman vai deixar saudades e parece ter terminado cedo demais. Mas, bem, o título do episódio final já antecipava: foi bom enquanto durou.

 

*Versão estendida do texto publicado originalmente na edição impressa de 12 de fevereiro de 2020.