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#37 ‘Glow’: mulheres e suas lutas

publicado: 26/02/2020 10h07, última modificação: 03/11/2020 11h25
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Série da Netflix é baseada na história real de um programa de TV americano de luta livre feminina - Foto: Divulgação/Netflix

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Os Estados Unidos amam luta livre, aquelas disputas coreografadas com personagens caricatos e pastelões. Muitas são como novelas mexicanas, nas quais existem centenas de episódios, os vilões e os mocinhos. O meio ainda é bastante masculino por lá, mas nos anos 1980 um curioso programa protagonizado por mulheres surgia nas telinhas, o Glow - Gorgeous Ladies of Wrestling. Mais de 30 anos depois, a Netflix estreou uma série de ficção baseada nesse time, a divertidíssima Glow.

Ela pode não ser a série mais famosa do canal, mas é sem dúvidas uma das mais cômicas. Não por menos: as criadoras do programa são Liz Flahive e Carly Mensch, roteiristas e diretoras por trás de programas como Weeds, Homeland, Nurse Jackie e Orange is The New Black. Na trama, um grupo de mulheres estrela na TV num horário fracassado um tosco show sobre luta livre, com direito a personagens estereotipados e tudo o mais (a mocinha americana, as vilãs comunistas, etc.). De todas as 15 mulheres, apenas duas são atrizes e outra é lutadora profissional; as restantes são simplesmente mulheres que estavam atrás de um bico extra para ganhar dinheiro. A série se passa na década de 1980, então, os penteados e figurinos extravagantes estão lá com toda a força do laquê.

Glow é protagonizada por Alison Brie (Community, Mad Man), Betty Gilpin (Deuses Americanos, Elementary) e Marc Maron (Easy, Coringa), mas conta com um extenso elenco de famosas desconhecidas de nichos específicos (a cantora Kate Nash está no elenco, assim como Kia Stevens, diversas vezes campeã mundial de luta livre e outras modalidades). Enquanto o programa original era, de fato, uma espécie de novela com o elenco apenas feminino de lutadoras de wrestling, a série do Netflix mostra o que teriam sido os bastidores e a criação do show. Claro, ele é levemente baseado na história real, mas ainda assim tem a “dona” do Glow dos anos 1980 como consultora oficial.

A abordagem de temas na cultura pop há 30 anos era bem diferente da de hoje em dia e, como diversos segmentos, a luta feminina já foi bem mais sexualizada do que nos dias atuais. Imagina um programa nos meados da década de 1980, comandado por homens, sobre mulheres lutando entre si vestindo basicamente maiôs asa delta? Pois é, o Glow atual tinha tudo pra ser tão apelativo quanto, um show carregado de câmeras ginecológicas nos moldes do Pânico na TV ou da Banheira do Gugu, mas ele é longe disso. A nudez, por exemplo, quando aparece, é naturalizada. Alison Brie até brincou sobre isso em um podcast, falando sobre como chegaram a um público masculino: “A exploração do tema foi como um Cavalo de Tróia levado para dentro do programa, onde infiltramos histórias reais e íntimas dessas mulheres nessa capa de tetas, bundas e luta feminina”, disse.

No segundo semestre de 2019, foi lançada a terceira temporada, a mais forte até então, bastante focada em desenvolvimento das personagens. Muitas tiveram seus momentos de redenção, mudança, autoaceitação ou descoberta, isso acontece inclusive com os homens da ficção. A opressão e domínio masculino no meio do entretenimento, assim como a homofobia escancarada que veio após o surto da Aids, são temáticas que aparecem ao longo dos episódios, assim como maternidade, relacionamentos à distância e realização profissional. Mas, por incrível que possa parecer, essas abordagens não tornam a temporada menos engraçada. Glow fez o que poucas séries conseguem hoje em dia: manter-se tão boa na terceira temporada do que nas duas primeiras e, para a nossa alegria e tristeza, a quarta e última temporada estreia neste ano no serviço de streaming.

Em Glow, temos corpos variados e identidade aos montes. Algumas personagens usam muito laquê, outras, nenhum; umas andam carregadas de maquiagem, outras sem; umas preferem maiôs, outras, roupas folgadas. Porque a vida real é assim mesmo. Existe o drama, conflitos e comédia numa série que tem o elenco e bastidores quase que completamente feminino e racialmente diverso. O que era um programa sexualizado virou uma história profunda e divertida sobre mulheres do dia a dia, uma rica narrativa sobre batalhas diárias, amor e muita correria. Isso foi possível porque mulheres passaram a contar suas próprias histórias – e ainda bem que esse tempo chegou.

*Publicado originalmente na edição impressa de 26 de fevereiro de 2020.