“Como um bastardo, órfão, filho de uma prostituta e de um escocês, jogado no meio de uma ilha esquecida do Caribe pela providência, empobrecido, na sordidez, cresceu para se tornar um herói e um erudito?” A pergunta vinda em forma de rap abre um dos mais bem sucedidos musicais da história da Broadway, em cartaz desde 2015: Hamilton. O que antes era uma experiência limitada a um abastado público norte-americano, chegou na semana passada na Disney+ e, em poucas horas, nos antros da Internet.
Hamilton narra a vida de Alexander Hamilton, um dos Pai Fundadores dos Estados Unidos da América que lutou pela independência do país no século 18. Como uma história que parece maçante para tanta gente tornou-se uma das 10 maiores produções da história da Broadway, arrecadando mais de 600 milhões de dólares em seis anos de cartaz? Um dos principais pontos é o caráter inovativo de ‘Hamilton’. O espetáculo de duas horas e 40 minutos de duração é uma inusitada mistura de dois mundos que parecem opostos: a história da independência norte-americana, dominada por colonizadores e homens brancos, vai ao encontro da sonoridade e estilo do hip-hop e um elenco majoritariamente não-branco, com multi talentosos artistas.
A mente por trás do estrondoso sucesso chama-se Lin-Manuel Miranda, primeira geração americana de uma família porto-riquenha. Com um currículo que inclui inúmeros Tony, Grammys, indicação a um Oscar pelo trabalho musical da animação Moana e ainda um Pulitzer, o artista foi o responsável pelo libreto, letras e música de Hamilton, além de ser o protagonista do espetáculo.
O musical é inspirado na biografia de Alexander Hamilton escrita por Ron Chernow e publicada em 2004 e traz personagens fundamentais para a independência estadunidense, como Lafayette, Benjamin Franklin, John Adams e George Washington -- todos eles interpretados por homens pretos e homens latinos. John Adams é o único propriamente identificado como abolicionista na peça, já que todos os outros eram proprietários de escravos -- inclusive Hamilton, que é por vezes retratado como mais progressista do que realmente era. Essa é uma das poucas críticas negativas que existem sobre o espetáculo, tecnicamente perfeito e de roteiro engajante.
O dramaturgo, poeta e ativista Ishmael Reed é um crítico ferrenho do musical desde que leu a sinopse para tal, tanto que só foi realmente assistir à peça cinco anos após a estreia nos teatros. O resultado da experiência de Reed foi o espetáculo ‘The Haunting of Lin-Manuel Miranda’ (algo como ‘As Assombrações de Lin-Manuel Miranda), uma peça que tornam públicas todas as críticas do artista. O enredo fictício mostra o diretor de Hamilton sendo assombrado por fantasmas de pessoas que foram deixadas de fora da história de sua produção, como escravos e nativo-americanos e enfatiza fatos ignorados -- principalmente a questão de que o próprio Alexander era dono de escravos. Ironias da vida: Reed, assim como Miranda, ganhou uma ‘bolsa para gênios’, prêmio cedido pela prestigiada Fundação MacArthur.
Pontos relevantes e pertinentes foram levantados por Reed em uma entrevista para o canal de notícias Vice. Lá, ele fala que o único jeito de Miranda redimir-se por omitir e distorcer uma parte importante da história seria tirar a peça de cartaz. Radicalismos à parte, concordo com as questões levantadas por ele e, ao mesmo tempo, continuo acreditando que Hamilton é impecável. Isso porque após ver tantas histórias onde os protagonistas não-brancos tiveram seus protagonismos roubados por atores caucasianos (Príncipe da Pérsia, Ghost in the Shell, O Último Samurai), achei incrível ver pretos e pretas interpretando personagens que não fossem escravos no contexto do século 18. Imagina como foi uma tapa na cara dos racistas patriotas de plantão?
Hamilton precisa ser encarada como uma provocação inicial para que a história seja conhecida a fundo -- o simples fato do elenco ser racialmente diverso já desperta o interesse pela história real -- e a própria narrativa do espetáculo é vista sob uma ótica egocêntrica e inflada do próprio Alexander Hamilton. A ficção baseada em fatos reais é livremente baseada justamente porque mudanças, por vezes, são feitas em prol de narrativas mais envolventes. Além da questão da raça presente de forma crítica sutil, ainda que poderosa, no musical, a contraditória política contra imigrantes nos Estados Unidos é escancarada na produção da Broadway. O tão falado “sonho americano” é sobre liberdade e vitórias individuais. Hamilton é isto. A idealização de uma sociedade onde não apenas brancos seriam protagonistas de grandes vitórias difundidas nos livros de história.
*publicado originalmente na edição impressa de 08 de julho de 2020.