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#27 ‘História de um Casamento’ e novos começos

publicado: 18/12/2019 10h05, última modificação: 03/11/2020 11h25
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Filme com Adam Driver e Scarlett Johansson está disponível na Netflix - Foto: Divulgação

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A solidão é desesperadora, ter alguém por perto é necessário. O tema é recorrente nas artes: Tom Jobim cantarola num piano que “fundamental é mesmo o amor/É impossível ser feliz sozinho”; Christopher McCandles tem a epifania de que “a felicidade só é verdadeira quando compartilhada” no filme Na Natureza Selvagem; os personagens de José Saramago em Ensaio Sobre a Cegueira sentem o vazio enquanto, sem visão, tateiam as paredes em busca de ordem em meio ao caos. As expressões são inúmeras mas poucas me tocaram tanto quanto a música ‘Being Alive’, de Stephen Sondheim: “(...)Mas estar sozinho é estar sozinho/e não estar vivo” (tradução livre).

A canção faz parte do musical Company, mas foi graças a performance de Adam Driver no filme História de um Casamento (2019) que a música foi elevada a um outro nível de dramaticidade.

O drama estreou em 6 de dezembro na Netflix Brasil e tem roteiro e direção assinados por Noah Baumbach (diretor e roteirista também de Frances Ha). Scarlett Johansson e Adam Driver vivem o casal Nicole Barber e Charlie Barber, dois americanos nos seus trinta e poucos anos, pais do pequeno Henry (Azhy Robertson), e que estão no começo do fim do casamento. O filme é um dos preferidos para as maiores premiações do cinema e já aparece entre os indicados ao Globo de Ouro, disputando em seis categorias (Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Atriz, Melhor Roteiro, Melhor Trilha Sonora Original e Melhor Atriz Coadjuvante). Já avisando, este será um texto com spoilers medianos.

Num constante clima de tensão, História de um Casamento apresenta algo como os cinco estágios do luto transportados para um divórcio. Estão presentes em cena a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação (não necessariamente nessa ordem). E eu sei, assusta um pouco um filme dramático envolvendo um casal e uma criança. Acredito que o medo vem porque tememos a efemeridade das relações. Temos medo de relembrar experiências ruins ou de vislumbrar uma possibilidade de um término. A experiência pode, de fato, ser mais difícil para quem já passou pela mesma situação. Mas não se engane: por mais triste que seja, História de um Casamento não é um filme apelativo, nada é preto no branco no drama de Baumbach e esta foi uma das únicas vezes em que, numa ficção, não consegui tomar partido. Ele é um filme real, cru. É como assistir a um documentário observando as cenas constrangedoras com a futura ex-família, a doçura da intimidade enraizada (escolher um prato, reconhecer as inúmeras qualidades) e a dor das frases que propositalmente machucam ao outro.

O filme trata de temas complicados de forma natural, sem exageros: é uma trama sobre a complexidade da maternidade, da paternidade, dos relacionamentos, da vida adulta, do sistema jurídico, da vida profissional. O que levou à exaustiva jornada do divórcio, da guarda compartilhada, das noites mal dormidas? Onde foi que deu errado? No filme, Nicole fala que, talvez, se Charlie tivesse dado a chance de ela assumir o comando, eles não teriam se separado. Ou mais à frente, fala que o motivo foi ele não ter apoiado uma escolha dela e ter colocado as próprias vontades à frente da esposa.

A questão é que não podemos (ou não devemos) prever erros ou cavar muito a fundo. Trabalhamos para que eles não aconteçam, mas, você sabe, eles acontecem. Essa mensagem não seria trazida tão perfeitamente não fossem as atuações e direção magistrais do começo ao fim. Elas são arrebatadoras em alguns momentos específicos ao longo do filme: para Scarlett Johannson, é quando, em plano sequência, desabafa com a personagem de Laura Dern; para Adam Driver, a hora de brilhar é aquela do número musical solitário num bar lotado (com a música que citei mais acima). Juntos, criam o sufocante momento da grande briga.

Em 2010, Noah Baumbach passou por um complicado processo de divórcio com a atriz Jennifer Jason Leigh, que envolveu uma disputa judicial pela guarda do filho do casal, Rohmer. Apesar de não ser biográfico, é difícil que o filme não traga a experiência do próprio diretor ou ainda de Johannson, que viveu uma situação bem parecida. O filme levou o diálogo ao set e, das gravações, ele chegou às nossas salas. As perguntas sobre o longa acabam sendo levadas para as histórias do nosso cotidiano e as respostas passam a ser turvas. Talvez o erro tenha sido contratar advogados. Talvez o divórcio tenha sido um erro. Talvez o erro tenha sido ter um filho. Talvez foi uma escolha errada ceder tanto. Talvez foi errado não ter dado ouvidos às frustrações do outro. Talvez não tenha sido certo ter se casado. Esses “talvez” nos sugam as energias e, no fim das contas, aceitamos - precisamos aceitar. Nos damos por vencidos, com a cabeça erguida e cadarços amarrados para seguir em frente. Sem tropeços. Talvez.

*publicado originalmente na edição impressa de 18 de dezembro de 2019