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#95 ‘Maravilhosa Sra. Maisel’ e a comédia judaica

publicado: 09/06/2021 08h00, última modificação: 09/06/2021 09h11
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Rachel Brosnahan vive uma típica dona de casa dos anos 1950 que acaba ingressando na comédia ‘stand-up’

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Está carente de uma série de comédia inteligente, de passo rápido e personagens memoráveis? Pois venho falar um pouco hoje sobre ‘Maravilhosa Sra. Maisel’, criada por Amy Sherman-Palladino, a mente por trás da cativante ‘Gilmore Girls’. Já avisando de agora que o timing para começar a assistir a série original Amazon Prime Video é perfeito: depois de um hiato de dois anos, a série volta para uma quarta temporada ainda em 2021.

Contextualizada nos Estados Unidos no final da década de 1950, ‘Maravilhosa Sra. Maisel’ acompanha a vida de Midge (Rachel Brosnahan), uma clássica dona de casa norte-americana, uma imagem perfeita das pin-up vestidas com seus aventais e saias rodadas, que colocavam alegremente um peru no forno enquanto seus dois filhos (um de cada sexo) comem uma tigela de cereal na mesa da cozinha. Sempre afiada em suas observações e piadas, ela ajuda o marido Joel a seguir a carreira de comediante de stand-up e, no processo de fracasso dele, ela descobre em si mesma um talento nato. 

Mas não espere conteúdos mais leves como aqueles que ‘Gilmore Girls’ fez ao longo dos anos 2000. Na produção da Amazon temos palavrões aos montes, cenas sugestivas de sexo e nudez e colocações bem mais assertivas sobre machismo e racismo, por exemplo. A série de Amy Sherman e Daniel Palladino apresenta, ainda assim, muitas similaridades com GG, em especial a acidez e o acelerado ritmo do roteiro. Ah, e tem também a cultura judaica.

Opa, espera, ‘Gilmore Girls’ judaica? Pois é. Muitas pessoas de dentro da comunidade argumentam que Amy Sherman infiltrou na comédia diversas particularidades da cultura a qual faz parte. E os argumentos fazem bastante sentido quando a gente analisa algumas outras grandes séries judaico-americanas de sucesso que possuem características em comuns entre si. ‘Seinfeld’, ‘Curb Your Enthusiasm’, ‘Mad About You’, ‘The Sarah Silverman Program’ ou ainda ‘Broad City’: todos esses programas, escritos e protagonizados por judeus e judias, têm um humor afiadíssimo, por vezes autodepreciativo, cotidiano e eventualmente surreal. Temos aí dos mais leves, tal qual a brilhante comédia romântica ‘Mad About You’, aos mais adultos ‘Seinfeld’ e ‘Curb Your Enthusiasm’, de Jerry Seinfeld e Larry David, até os mais escrachados criados por Sarah Silverman, Ilana Glazer e Abbi Jacobson.

Essa relação do judaísmo com a comédia é bastante abordada em ‘Sra. Maisel’ uma vez que ela dá destaque à cena de stand-up dos anos 1950 e como esse ambiente era majoritariamente ocupado por judeus dos mais diversos backgrounds. É como se, por ter sofrido tanto ao longo dos séculos, o povo judeu encontrasse na comédia uma forma de exorcizar suas dores. Me vem logo em mente a faixa “Remember That We Suffered” de ‘Crazy Ex Girlfriend’, série musical criada por Rachel Bloom e Aline Brosh McKenna (também judias). Cantada pelo elenco durante um Bar Mitzvah, a sarcástica letra tem trechos como “O holocausto foi um negócio sério/Lembre que nós sofremos!/Esse DJ é maravilhoso!/Lembre que nós sofremos!”.

O judaísmo é tão distante da minha realidade paraibana/nordestina que por muito tempo eu consumi séries e filmes que abordavam a cultura, mas nunca havia de fato parado para enxergá-la. Continuo um pouco confusa sobre o que define alguém como judeu? Eu estaria mentindo se dissesse que não. Isso porque existe o grupo étnico judeu, aquele que inclui quem descende dos hebreus, e existe o grupo religioso. Sarah Silverman, que citei anteriormente, é declaradamente ateia e se define como uma “judia sem Deus”. 

Há algum tempo escrevi sobre ‘Nada Ortodoxa’, uma excelente minissérie dramática que aborda a vida de uma jovem em meio a uma comunidade hassídica em Nova York e sua busca por autoconhecimento e liberdade individual. Outro drama escrito e protagonizado por judeus, o frenético longa ‘Joias Brutas’ (2019), dos Irmãos Safdie, é ambientado num contexto bem mais mesclado com a sociedade contemporânea dos EUA. Ambos representam faces do judaísmo, mas esse dado é um daqueles de RPG, então pode esperar de 24 lados pra lá. Todas as produções (e muitas outras) que citei acima são um exemplo disso. 

(A tempo: isso tudo que falo pouco tem a ver com o autoritário Estado de Israel. Minha visão é puramente voltada para o grupo étnico e religioso judeu enquanto retratado no audiovisual e suas abordagens peculiares, por vezes hilárias e únicas, da comédia cotidiana).

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 09 de junho de 2021.