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#193 ‘Minha Vida de Abobrinha’ e o significado de lar

publicado: 27/09/2023 11h45, última modificação: 27/09/2023 11h46
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Longa-metragem traz a utilização da técnica de animação em ‘stop-motion’ - Foto: Charlotte Désigaud/Divulgação

por Gi Ismael*

Gosto de pensar no clichê que diz que lar é onde há amor (e carinho). Assim, interpretando que muitos lugares e pessoas podem ser morada, consigo definir diferentes rumos em minhas jornadas. Assisti recentemente uma animação infantojuvenil que trouxe uma das abordagens mais sensíveis a esta subjetividade de “lar” e de “família” que já vi e hoje gostaria de te falar um pouco sobre ela.

Minha Vida de Abobrinha (2016) conta a história de Icare, um garotinho de nove anos que vive num lar inóspito junto com sua mãe, uma mulher que sucumbiu ao álcool e à depressão após a morte do marido. Quando perde sua mãe em um acidente doméstico, Abobrinha, como era apelidado o garoto, é transferido para um lar de crianças órfãs e lá aprende a conviver com as diferenças, conhecendo de perto o amor incondicional.

Abobrinha faz questão de ser chamado assim porque era assim que sua mãe o chamava. As paredes do sótão onde dorme contam toda a narrativa criada pelo garoto para passar seus dias: sua mãe, com cara amarrada, está sob uma latinha gigante. Seu pai é um super herói que mora numa casa no céu, rodeado de galinhas que alçam vôos ao seu lado. Enquanto desenha seu pai numa pipa, o garoto cata latinhas de cerveja espalhadas pela casa, as pintando e construindo castelinhos. Abobrinha redefine tudo ao seu redor: até o apelido dito em tom de xingamento, firmando-se nas lembranças felizes que o nome um dia carregou.

Duas são as lembranças que ele carrega consigo ao orfanato: uma latinha de cerveja e a pipa. As histórias que ouvia sobre seu pai e o que via diariamente era tudo o que tinha. Justo no momento de solidão, Abobrinha passa a enxergar vida ao seu redor e é preenchido por sentimentos novos, passando por um amadurecimento, ainda que injusto para uma criança, forçado e necessário dado seu contexto.

As escolhas estéticas do filme, que vão desde o figurino dos bonecos às cores de suas peles e detalhes do rosto pintam o filme com um ar de livro infantil dos mais lúdicos e sensíveis. E mesmo com o semblante abatido do jovem protagonista, é com esses recursos de vivacidade visual que Minha Vida de Abobrinha consegue abordar temas difíceis de nossa condição humana sob a curiosa ótica infantil, levantando tópicos sensíveis até para os adultos, como a morte, sexo, vícios e abandono. É preciso um punho forte para levantar tais temas numa obra infantil e a certeza de que aquela abordagem será compreendida e absorvida por uma criança de 10 anos (como sugere a classificação do longa no Brasil).

Nomear os tópicos assim pode assustar até quem não é dos públicos mais conservadores. São muitos tabus da nossa sociedade ocidental em poucas palavras, ainda que sejam realidade constante na vida de muitos. Cada criança de Minha Vida de Abobrinha carrega uma história e um motivo para estarem lá, e isso deixa o sobressalente rótulo de “órfão” para o segundo plano e trazendo personalidade e profundidade para cada personagem.

Minha Vida de Abobrinha traz delicadeza em tudo que propõe, inclusive na utilização da primorosa técnica da animação em stop-motion. De fato, a produção francesa criada por Claude Barras merece todos os elogios que recebe e indicações e prêmios que conquistou. Recomendo que assista na companhia de uma criança ou adolescente; tenho certeza que ótimas conversas vão surgir depois da sessão. O filme está disponível na plataforma Mubi e também para alugar no YouTube e Prime Video.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 27 de setembro de 2023.