por Gi Ismael*
Eu sei que, provavelmente, não exista gente que realmente “goste” de Dia de Finados. Mas eu, entenda, detesto essa celebração mórbida tradicionalmente cristã dos nossos entes queridos que morreram. Não gosto do rito de funerais, caixões, missas de sétimo dia. Desde criança (com criação católica, vale salientar) não me acostumei com a ideia de que aquela tristeza coletiva era efetiva numa suposta passagem “desta para uma melhor”.
Entendo que para muita gente -- a maioria até, ao menos aqui no país --, esse processo seja fundamental para o luto. Mas nunca houve um encaixe para mim. Talvez por essa carga que os velórios me causam, a morte seja o grande tabu que enfrento no meu particular. Quando o assunto passa por minha mente, começo a entrar numa espiral de preocupações e antecipações que vão desarrochando os parafusos da cabeça. Sinto vontade de chorar. Sinto agonia. Penso nos meus momentos finais, penso na morte de todos que amo antes da minha própria e o sofrimento que acumulo é sem igual. Literalmente me sacudo para desfazer à força os pensamentos morbígenos.
Dentro de casa, quando levantado, o assunto logo era encaixotado. “Nunca vivemos o processo de luto completo”, disse minha irmã recentemente. E é verdade. Há mais de 15 anos, perdemos vovó Rosália (eu estava entrando na adolescência). Nossa outra avó, Vilma, e dois avós, Severino e Everaldo, faleceram antes de eu nascer. Foi só no ano passado que perdemos dois familiares mais próximos: tia Tuca, minha madrinha, e tio Chico, irmão de mamãe. Não presenciamos funerais, caixões ou missas de sétimo dia.
E, para mim, pode ter sido menos traumático assim.
Ao longo da vida adulta, me vejo dando passos lentos no caminho de olhar para a morte como ela é: a única certeza que temos na vida. No último mês, pulei três casas e senti uma elevação de espírito quando uma chave foi virada. Pela primeira vez na vida, me senti tranquila em relação à morte. As palavras vieram do lugar que eu menos esperaria: uma minissérie de terror. Vou contar sem spoilers.
A morte é um dos grandes temas, se não o tema central, de ‘Missa da Meia-Noite’, uma produção original Netflix criada por Mike Flanagan (‘A Maldição da Residência Hill’, ‘A Maldição da Mansão Bly’). Com grandes discussões filosóficas que se baseiam ora por passagens bíblicas, ora por ceticismo ou ciência, vimos que tudo que encaramos no nosso cotidiano é moldado de acordo com nossos conceitos e vivências. Ao mesmo tempo, nossas crenças ou falta delas, que tanto definem, podem se esvair num estalar de dedos.
Em um determinado ponto da série, temos um diálogo entre dois personagens com visões dicotômicas sobre a grande pergunta “o que acontece quando nós morremos?”. Enquanto um tem uma visão depressiva e completamente niilista acerca de como seria seu último momento na Terra, a outra crê, esperançosa, naquilo que ouviu na igreja durante toda sua vida. Mais uma vez, para mim, nenhum encaixe. Foi num monólogo, poucos episódios depois, que ouvi a definição perfeita do que acontece quando nós morremos e depois disso. Era uma visão cíclica. Uma visão pura que nos define de igual para igual com todo resto de partícula que habita o Universo, apresentando uma versão muito clara e bela, finalmente, da nossa efemeridade.
Quando soube da morte de Marília Mendonça, não consegui pensar em nenhuma dessas definições póstumas. Pensei apenas no agora. Na figura marcante que ia embora tão precocemente, na mãe que partiu, na amiga de muitos e no ídolo de milhões que não mais estava aqui. Marília era um símbolo muito forte de autonomia feminina em diferentes aspectos, tanto em como vivia sua vida quanto o que passava através de suas composições. Era uma figura querida. E é sempre mais pesado quando as figuras queridas nos deixam.
Mas Marília acreditava no poder da sofrência. Do chorar, levantar os braços, fazer de microfone uma escova de cabelo. Para ela, o luto manifestado desta forma de aceitação e descarregamento de sentimentos ruins, era sinal de dias melhores. Era uma prova de que aquilo também vai passar.
Hoje entendo que minha percepção particular acerca do começo, meio e fim, atua diretamente numa visão mais equilibrada entre o racional e o emocional. Compreendo, também, porque tantos optam pelo rito de funerais, caixões e missas de sétimo dia. A vida é muito mais perguntas do que respostas. Essa falta de controle que temos deixa que a emoção grite enquanto a razão fica ali no cantinho da sala. Mas o luto é uma impressão digital única em cada pessoa. Textões, compartilhamento de vídeos e fotos, silêncio absoluto, sofrência… cada um lida como precisa, cada um enfrenta como pode.