por Gi Ismael*
O clima estava agradável quando passei uma parte das minhas férias em Nova York no ano passado. Na verdade, o clima estava perfeito, tirando uma chuva ou outra. A Big Apple foi o começo e o fim do mês sabático, recheado com uma viagem inesquecível ao Japão no intermédio (escrevi uma série especial sobre ela aqui na coluna, lembra?). Na ida, ficamos hospedados perto do Central Park, no meio da frenética vida nova iorquina, justamente para um caloroso início de viagem. Pensamos que a volta seria mais cansativa e mais apertada financeiramente, então nos aconchegamos no Brooklyn a fim de conhecer um outro lado dos ianques. Li nas resenhas do hotel escolhido que aquela era uma área tranquila, ocupada por judeus ortodoxos. Mas eu não imaginava o quanto aquilo seria um outro universo para nós.
Víamos uma vizinhança branca conversando numa língua a qual não entendíamos. As mulheres e as crianças, que eram muitas, vestiam-se como aquelas da década de 1940. Os homens, com as tradicionais vestimentas, tinham sobretudos e inúmeras camadas de panos pertencentes à tradições e rituais religiosos. Confesso que posso ter sido mal-educada, mas foi difícil não olhar para tudo que acontecia ao redor em uma ocasião ou outra. Tudo causou uma impressão nova, mas um detalhe ficou comigo desde então: todas as mulheres usavam peruca de cabelos lisos e morenos, num estilo de corte um pouco maior que um “chanel”.
Estava zapeando pelo catálogo Netflix quando me deparei com o trailer de uma minissérie dramática intitulada Nada Ortodoxa. Não li a sinopse mas fui fisgada pelo título e pelo cartaz. Assisti o trailer e lá estava a garota de cabeça raspada, metade imersa num rio, com lágrimas nos olhos enquanto segurava em mãos a peruca recém-tirada. Esqueça a música dramática, as tradições religiosas, as interpretações fortes e até mesmo o idioma iídiche presentes no trailer. Foi a peruca que me fez querer assistir a minissérie. Sorte a minha que o contexto da peruca não seria o único cenário o qual a série me apresentaria.
Com apenas quatro episódios de duração, a produção germano-americana conta a história da jovem Esther (Shira Haas), nascida e crescida em meio a hassídica comunidade Satmar, em Nova York (descobri que a série se passa exatamente no bairro onde ficamos hospedados, Williamsburg). A fuga da garota é movida pela vontade de pertencer e ser acolhida em algum local do mundo e, graças à cidadania alemã, o país que infelizmente foi berço de muito sofrimento para a comunidade judaica no início do Século 20 é exatamente para onde ela vai.
Esther tem apenas 19 anos e vive um frustrante casamento arranjado. Além disso, o excesso de regras provindo de uma comunidade descendente de húngaros sobreviventes da Segunda Guerra Mundial fica insustentável para a garota. O fato de que a história é baseada na vida e obra de Deborah Feldman, autora do livro Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots (em tradução livre, “Não Ortodoxa: A Escandalosa Rejeição das Minhas Raízes Hassídicas”), torna a experiência da série muito mais real e incrivelmente detalhista. Feldman acompanhou de perto as filmagens e foi consultora de todo o processo, que envolveu inclusive aulas do idioma iídiche para os atores e atrizes (o dialeto é uma mistura do germânico, de dialetos modernos como o eslavo, e ainda da linguagem semita). Nos sentimos dentro de uma comunidade marginalizada, repleta de costumes complexos e extremos. Detalhe interessante: a série foi toda filmada em Berlim.
Nada Ortodoxa não traz uma fotografia inovadora nem planos dinâmicos, mas conta com sensibilidade e maestria os conflitos de uma comunidade religiosa por vezes alienada, que vive às sombras do horror do Holocausto e o genocídio do seu povo. É uma história que pode ter uma conjuntura distante da nossa, mas nos proporciona empatia e identificação quando nos deparamos com uma adolescente tentando encontrar seu lugar no mundo. Graças à interpretação da israelense Shira Haas, com um ápice emocionante no último episódio, e à direção de Maria Schrader, Nada Ortodoxa dá uma aula de como uma obra ficcional pode levar tanta verdade ao público.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 15 de abril de 2020.