por Gi Ismael*
Quando a gente escuta - ou fala - “não misture sua vida pessoal com o trabalho e vice-versa!”, o conselho geralmente entra por um ouvido e sai pelo outro. Porque é difícil a gente desassociar nossas emoções. Se algo está errado em casa, o trabalho fica pesado, exaustivo, árduo. Se o trabalho está estressante, carregamos parte dessa estafa para casa, descontando às vezes em hábitos não saudáveis ou em pessoas que não tem nada a ver com a situação. Mas se um dia alguém chegasse para você com a promessa de te “separar” em duas pessoas, numa realidade onde o seu “eu” do cotidiano jamais se lembraria do que acontece no trabalho? Ah, tem uma pegadinha: sua outra personalidade dissociada não teria nenhuma lembrança de sua vida pessoal e viveria sua vida inteira, literalmente, dentro de um cubículo, sem contato com a vida exterior, como as pessoas da Alegoria da Caverna’, de Platão. Você encararia?
Essa é a proposta da nova série da Apple TV+, ‘Ruptura’. A produção de ficção científica distópica, dirigida por Ben Stiller (sim!) e Aofie McArdle foi criada pelo roteirista estreante Dan Erickson. A série, cuja primeira temporada já chegou ao fim após nove episódios hipnotizantes, foi idealizada em 2016, quando o site Bloodlist publicou o script do piloto. O portal, bastante conceituado na indústria, reúne roteiros de filmes e séries de terror e ficção científica. Criado pela agente literária e produtora Kailey Marsh, filmes como ‘A Chegada’ (2016), ‘O Cisne Negro’ (2009) e ‘Enterrado Vivo’ (2010) tiveram seus roteiros publicados inicialmente no site, e, a partir dele, foram vendidos e executados. Em 2019, foi anunciado que Ben Stiller havia selecionado a produção e seria não apenas o diretor, como também o produtor executivo. Se a lembrança automática que aparece com o nome Ben Stiller é ‘Zoolander’ e ‘Entrando numa Fria’, não te julgo, mas recomendo fortemente assistir o incrível ‘A Vida Secreta de Walter Mitty’ (2013), dirigido e protagonizado por Stiller.
Agora, para falar do enredo em si, vou me ater aos acontecimentos apenas do primeiro episódio para não estragar a experiência de quem não assistiu. As Indústrias Lumen atuam há décadas no mercado estadunidense apesar de não existir um consenso ou transparência no tipo de negócio que a empresa realiza. Mesmo assim, dominada por uma família de bilionários, o conglomerado Lumen oferece uma tecnologia inovadora, que através de um implante no cérebro do paciente, é capaz de fragmentar sua mente e a desligar por completo quando o receptor entra no ambiente de trabalho da empresa.
O andar da “ruptura”, nome do programa, é aparentemente vazio, com poucos funcionários que fazem atividades maçantes no piloto automático, sem saberem o que ou para quem trabalham. Eles também não têm ideia do quem são seus "externos", ou seja, seus “eus” que optaram pelo procedimento, e os “externos” não têm ideia do que acontece durante as oito horas que seus “internos” estão no trabalho. A série reflete sobre o mundo corporativo e suas tentativas de mascarar abusos através de festinhas sem sentido e recompensas torpes.
‘Ruptura’ é uma produção por vezes minimalista em seus cenários, porém grandiosa em sua escalação. Adam Scott, Britt Lower, John Turturro, Christopher Walken, Patricia Arquette, só para citar alguns nomes. Todos acertam em cheio quando a série pede por momentos dramáticos, sarcásticos, surreais ou tensos. O criador da série bebe da fonte de filmes como ‘Quero Ser John Malkovich’ (1999), ‘Brazil’ (1985) e ‘O Show de Truman’ (1998), então dá para ter uma ideia do tom adotado na produção.
Esta é uma série onde todos os minutos são aproveitados com maestria. Cada episódio conta a história em doses ideais, suficientes para despertar a curiosidade para os capítulos subsequentes e na medida para não encher de informação a cabeça do espectador. É maravilhoso acompanhar as vidas paralelas dentro e fora do escritório, é angustiante tentar se colocar no grande dilema ético proposto.
‘Ruptura’ é uma dessas séries impecáveis que precisam ser assistidas por todos os fãs e apreciadores do gênero sci-fi. Após deixar um gancho absurdo no último episódio, a ótima notícia é que uma segunda temporada já está mais do que confirmada. Se eu apenas pudesse hibernar por alguns meses até a estreia da próxima temporada… Melhor não.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 27 de abril de 2022.