Notícias

#203 O fim do mundo em João Pessoa

publicado: 17/01/2024 10h11, última modificação: 17/01/2024 10h11
Verde-Gás-Ricardo-Oliveira-FotoNatália-Di-Lorenzo.jpg

‘Verde Gás’ é a estreia do escritor paraibano Ricardo Oliveira no romance - Foto: Natália Di Lorenzo/Divulgação

por Gi Ismael*

Andar pela Grande João Pessoa, atualmente, é se deparar com inúmeros edifícios verticais e um número crescente de condomínios fechados horizontais. Cada uma dessas últimas construções propõe ser o seu refúgio, sua redoma e seu lugar seguro. Sua Canaã. O ideal por trás de cada uma delas é que você esteja ali, confortável, em seu microcosmo de paz e comodidades mesmo que o mundo se acabe do outro lado dos muros. Esse é um dos fios condutores de Verde Gás (O Grifo, 208 páginas), romance pós-apocalíptico do autor paraibano Ricardo Oliveira.

Situado em João Pessoa, o livro acompanha o cotidiano do arquiteto João, sobrevivente de um gás venenoso que assolou o país num passado-presente nada distante. Tomado pelo horror de estar cercado de corpos e cenários abandonados, ele decide trabalhar sua ansiedade fazendo uma limpeza no condomínio onde mora, sendo jardineiro e coveiro de porta em porta das residências ocupadas por famílias mortas.

Verde Gás traz um aspecto de familiaridade muito além de seu contexto geográfico graças ao seu viés crítico quando expõe o que significa crescer inserido no contexto conservador-cristão brasileiro. O livro alterna entre passado e presente, portanto conhecemos João desde a sua infância (boa parte dela naquele mesmo condomínio, o Vilas de Canaã), entre brincadeiras com os amigos e ciclos de encontros cristãos com aquelas crianças e pastores. Percorremos seu amadurecimento da juventude à vida adulta, atravessado por incompatibilidades e inconsistências pregadas de si para a igreja e da igreja para si.

Com ritmo cadenciado, Verde Gás acerta quando pincela diferentes gêneros, com romance de apertar o coração, mistério envolvente, drama dilacerante e horror bastante incômodo. Incômodo, aliás, me parece a expressão correta para definir o livro: incômodo. Mas não no sentido metalinguístico, seu conteúdo é feito para incomodar e provocar, replicando cenários reais e trazendo analogias de um autor que, sim, é cristão. Importante trazer aqui: é fichinha um ateu criticar as instituições religiosas, mas considero um ato de coragem criticar aquilo que é uma das suas características culturais, que ainda te cerca quando a maior parte da sua estrutura e ciclos sociais está inserida nesse contexto.

Há poucos dias, passei de carro pelo antigo HiperBompreço na BR-230, um prédio agora completamente abandonado que parecia ter saído de Eu Sou a Lenda, The Last of Us ou Verde Gás. Sim, o livro é tão visual que naturalmente virou referência de ficção pós-apocalíptica para mim. Isso tem acontecido com frequência desde agosto, especialmente no condomínio fechado onde moro. E são os pequenos detalhes: os vizinhos que não se falam, a falsa sensação de segurança em meio a furtos, muros cada vez mais altos, discussões egoístas e agressivas nos grupos de WhatsApp.

Dito tudo isso, Ricardo é um grande amigo que confiou a mim uma das leituras prévias deste que é seu primeiro romance. Achei melhor deixar a informação para o final para não guiar seu pensamento crítico junto ao meu, mas prometo que o orgulho que senti vendo concretizado um projeto tão esperado não me cegou ao longo da experiência que é ler essa obra. Acredito que Verde Gás seja um dos grandes títulos contemporâneos da literatura brasileira de ficção.

O livro foi lançado em dezembro passado com eventos nas principais livrarias da capital paraibana e sua bem-sucedida campanha de financiamento coletivo fez com que Verde Gás fosse parar em prateleiras e kindles ao redor do país. Inclusive, recomendo a versão física da obra e o kit complementar, composto por folder com um mapa colorido do condomínio, uma amostragem do caderno de rascunhos do protagonista, além de adesivos, marca páginas e pôsteres. O uso da máscara de gás ao longo da leitura é opcional.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 17 de janeiro de 2024.