Em 29 de julho de 2023, o mundo pop parou. Ela, uma das maiores celebridades do mundo, lançava um novo trabalho, uma coleção de canções inéditas sobre amor próprio, liberdade, sexualidade e empoderamento de raça, gênero e classe: Renaissance. Beyoncé, o nome que virou um adjetivo de grandiosidade, liberava um disco completamente diferente do que já havia feito em sua carreira, um álbum que se afastava do R&B e flertava com trap, hip hop e principalmente música disco. Virou uma febre: o disco tocava na íntegra em boates de todo o mundo, singles viralizaram nas redes sociais e possibilidades de shows eram ventiladas. Os fãs, que primeiro pediam pelos “visuals” (ou seja, os famosos álbuns-visuais dirigidos pela cantora), logo passaram a pedir pela turnê mundial – especialmente os fãs brasileiros, claro. Ela aconteceu, assim como a norte-americana, e nós ficamos de fora. Até que… Bem, a não ser que você seja uma pessoa completamente alheia à televisão e à internet, você sabe o acontecimento que vou citar em seguida.
Em dezembro, estreou mundialmente Renaissance: um filme de Beyoncé, um longa de quase três horas de duração que trazia o show na íntegra, intercalado com entrevistas e bastidores do espetáculo. Sem um show ao vivo para chamar de seu, o público brasileiro se preparou em peso para ir aos cinemas, e eis que em um evento de pré-estreia para fãs em Salvador, Beyoncé em pessoa apareceu para dar um discurso de alguns minutos. A euforia foi tanta (vale salientar que além de ser a maior estrela pop do mundo, já fazia 10 anos desde a última vez que a cantora se apresentou ou pisou no país) que mal foi possível ouvir o que ela dizia. Perdi a turnê, perdi a aparição na Bahia, mas fui numa quarta-feira de dezembro assistir ao filme às duas da tarde – de roupa prateada, claro.
Com 42 anos de idade, quase 30 de carreira, imagino ser difícil uma vivência particular completamente alheia da sua profissional, mas o longa divide bem a Beyoncé dos palcos, a Beyoncé empresária e a Beyoncé que tem uma vida pessoal, tornando-a uma pessoa identificável – para o bem ou para o mal, inclusive. Em determinado momento, ela mostra situações onde exige algo para seu show e os técnicos responsáveis inventam desculpas para não atender ao pedido. Com a resposta de alguém que claramente tinha estudado o assunto e não se deixaria ser enrolada, Beyoncé se frustrava cada vez que era subestimada. Sinceramente, se até ela já não foi ouvida por um homem no ambiente de trabalho, imagina eu? Triste.
O filme deveria levar ainda outro subtítulo: Renaissance: um filme de Beyoncé - Quem vê close, não vê corre. A imersão do cinema, com altíssima qualidade de som e imagem, jamais será igual à sensação de estar de corpo presente em um evento como esse, mas realmente nos aproxima da experiência trazendo um tempero diferente. É na sala de cinema que absorvemos cada detalhe do espetáculo, da pré-produção à execução e a pós (sempre com a artista segurando as batutas). É inimaginável a quantidade de equipamento, estrutura, funcionários e horas de trabalho envolvidas em uma turnê como essa e o filme faz questão de apresentar isso – na minha teoria, como um tapa com luva de pelica na cara dos próprios fãs exigentes que acreditam ser fácil realizar um evento assim.
Renaissance foi uma das melhores experiências que já vi no cinema e acredito que isso aconteceria independente de eu ser uma admiradora nada secreta da cantora, sua história e seus projetos sociais voltados especialmente para a população preta. Mas a maturidade não me permitiu ficar cega diante de qualquer crítica negativa; as que existem, na verdade, vão além das três horas do filme: não consegui desviar do fato de que o filme estava em cartaz em Israel, como se o país não estivesse praticando um genocídio em tempo real, e me pergunto sobre o impacto ambiental que tem uma turnê como essa, que circulou por dezenas de cidades ao redor do mundo. Ter esses pensamentos enquanto uma trilha animada tocava me soou como ‘Singing in the Rain’ no meio de Laranja Mecânica.
E aí vem a dubiedade de se viver numa sociedade regida pelo capital e eu não consegui ignorar algo muito óbvio ao meu redor: a quantidade de homens e mulheres, especialmente pretos e pretas, dentro ou fora da comunidade LGBT, tocados por cada uma de suas músicas e histórias. O que Beyoncé representa é positivamente impactante na vida de milhões de pessoas diariamente afetadas negativamente pelo que há de pior na humanidade.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 24 de janeiro de 2024.